Relatos da Guerra Civil Brasileira: A centelha que antecede a morte - Recicla Leitores
Três anos depois do fim da Guerra Civil Brasileira…numa cidade qualquer do Brasil. Ano 2039
— Só de olhar pra ele, me dá medo. Ele fica ali horas sem falar com ninguém…toma a birita em goles curtos…seu olhar fixo no nada…apavorante. — comentou Vanessa, enquanto seus amigos espiavam, de soslaio, o homem solitário na mesa sete da Taverna Notívaga.
O barman, que recolhia copos usados no balcão, ouviu o comentário da moça, e fez justiça à boa índole do homem observado pelos jovens. A máquina de música tocava a enigmática “Muito Tudo”. O barman diminuiu o som.
— O nome dele é Felício. Aquela cicatriz assustadora que atravessa o seu rosto, da testa à garganta, foi um troféu conquistado numa das batalhas da Guerra Civil Brasileira. Ele é um herói democrático…merece o nosso respeito…
Vanessa, Leonardo e Anderson, surpresos com o que acabaram de ouvir, voltaram novamente seus olhares para a mesa sete. Felício se levantou virando o copo de cerveja num gole lento, repôs o copo na mesa, afastou a cadeira, e caminhou na direção dos jovens curiosos, que ficaram em pânico. Acalmaram-se brevemente, quando o estranho se dirigiu unicamente ao barman no balcão para pagar a conta. Foi-se embora, para alívio dos bisbilhoteiros.
— Ufa! Quase me borrei na calça. Achei que ele ia criar confusão por causa de nossa curiosidade. Nem disfarçamos.
— Ai Leonardo, como você é bundão. Se fosse pra brigar, acho que ele pegava o branquelo do Anderson. Nem sei porque namoro com você, negro bunda mole!
Anderson não gostou do comentário infeliz da amiga. E não deixou por menos.
— Sim, sou um branquelo, mas nunca vi o negro como meu inimigo. Aliás, meu irmão e minha irmã morreram em combate, lutando ao lado dos negros e das minorias, na Guerra Civil, pela democracia.
— Aí, meu amigo, me desculpe, me desculpe, eu fui infeliz, mesmo. Mas o Leonardo é muito medroso. E o pior, a família dele lutou do lado do fascismo brasileiro…falo mesmo…
— Assim você me ofende, Vanessa. Eu só tinha 15 anos…Eu não tenho culpa pela cagada dos meus irmãos. Sei lá, eles estavam hipnotizados. Morreram defendendo a barbárie do governo. Até hoje a família não sabe como aconteceu. Só sei que a última vez que foram vistos estavam nas proximidades da área onde aconteceu a Batalha do “Último Esconderijo”.
Vanessa, vendo os lábios do namorado tremendo, percebeu o tom cruel do comentário dela. Arrependida, abraçou Leonardo, pedindo desculpas verdadeiras.
O barman, localizado bem na frente dos jovens, enxaguava os copos envolvidos pela espuma do detergente, mas a sua atenção auditiva não deixou escapar nada da conversa dos namorados. Seus gestos faciais demonstravam a sua inquietação de pensamentos. Seus lábios ameaçadores agiram.
— Leonardo, sei que você não gosta muito de falar sobre essa guerra imbecil, seus irmãos e tal. .. Ouvi você falando da Batalha “Último Esconderijo”. O Felício, o homem da cicatriz na cara, bem… ele lutou naquela batalha também. Nem sei porque tô te dizendo isso…De repente ele viu seus irmãos por lá…Felício vem duas vezes na semana aqui, faz uns três meses que frequenta o bar…É de pouca conversa, mas um dia conversamos bastante. É um cara dez. Deveria falar com ele, Leonardo…
Leonardo jogou dez reais no balcão, desprendeu-se dos braços da namorada e saiu sem dizer tchau. Seus companheiros, atônitos, correram atrás dele e o acompanharam até a sua casa. A caminhada silenciosa dos três combinou com o vento frio daquela noite.
Os três caminhantes eram vizinhos; Vanessa morava na casa ao lado do namorado, Anderson, na frente. Ao chegarem na casa do Leonardo, o desconforto entre os três era agonizante, de modo que se despediram sem cerimônia, com os rostos lamentosos.
Leonardo dormiu mal naquela noite, passou horas lembrando dos seus irmãos, tentando entender o absurdo trágico de tudo aquilo. Distraiu-se lendo as milhares de mensagens da Vanessa no smartphone: ela pedia desculpas por falar bobagens.
Na tarde do outro dia, por volta das quatro horas, Leonardo sentiu o smartphone vibrando no bolso da sua bermuda. Visualizou na tela uma mensagem, enviada pelo barman. “Posso te ligar…” Leonardo pensou por alguns segundos, e digitou “Sim” seguido do clique em enviar. Minutos depois atendeu a ligação já esperada.
— Oi, Leonardo, putz…cara, nem sei como dizer a você…bom, não me leve a mal…vai me achar enxerido, mas, enfim… É… Eu comentei de seus irmãos com o Felício. Ele me perguntou os nomes…ai mencionei…você sabe, estudei anos com seus irmãos… A gente era amigos… Cara, ele conheceu os seus irmãos… Aí contei que você fica tristonho com a bandeira que eles defenderam… Enfim, ele quer falar com você…
A testa de Leonardo suava, e não era pelo sol forte da tarde. Apoiou seu corpo na árvore do passeio público, suas pernas tremiam.
— Sério? Foi ele que matou os dois? Devo agradecer? Sinceramente, ele fez o que todo homem inteligente teria feito…
— Não sei se foi ele quem pegou seus irmãos. Só me disse que aquela cicatriz tem a ver com um episódio que eles participaram. Acho Bacana você falar com ele. Felício é misterioso, vem sempre no bar. Fala pouco. A última coisa que ele soltou da boca foi bem assim: “O jovem precisa saber sobre aquela noite. Amanhã às oito horas, na mesa 42, a do fundo do bar. Só eu e ele.”
Leonardo, indeciso, respondeu que até a hora marcada decidiria se ia ou não conversar com o herói da Guerra Civil. O barman daria o recado ao homem da cicatriz.
***
— Sinceramente, você deve ir sim, amor, nada melhor do que colocar os pingos nos “is”. Esse lance dos seus irmãos é algo pesado pra você. Sei lá. De repente…pode ser um alívio…converse com o estranho.
Leonardo ouvia atento as palavras da namorada enquanto Anderson mastigava estrondosamente batatas fritas. O amigo resolveu palpitar, antes do sinal de fim de intervalo tocar no refeitório da escola.
— Se for tome cuidado, vai que ele quer matar o último dos irmãos negros fascistas…embora você não seja…
— Vai se foder, imbecil! Assim que você é amigo dele? Merdinha do cacete!
— Calma, gente…eu vou falar com o cara rasgada. E sozinho, já aviso. Não quero vocês naquele bar durante o encontro…vai que o Anderson esteja certo…
***
Na data, hora e local combinados, Leonardo compareceu. Entrou na Taverna Notívaga e, sem falar com ninguém, rumou direto para a mesa 42, sob o olhar curioso e brilhante do barman, que acenou com a cabeça.
O cara rasgada, Felício, aguardava-o sem disfarçar a sua ansiedade seguida de contentamento ao avistar o jovem. O barman sorria de trás do balcão, sentiu-se recompensado por ter aproximado aquelas duas pessoas, as quais trataram sobre assuntos do passado recente, feridas doloridas e ainda abertas.
— Fico feliz por ter vindo, jovem. Sente aí. É… Prazer, sou o Felício. Não se assusta com minha cara, foi um rasgo e tanto. É verdade…
— Prazer. Leonardo. Verdade, deve ter doido e sangrado muito.
— Ah, sim. A sutura foi feita com ferro em brasa. Precariedades de um regimento popular…
— Que bom que você lutou do lado vencedor…
— Nem por isso, viu. Lutei no lado certo. Perder ou vencer uma guerra não importa mais que a bandeira que carregamos. O Brasil democrata e de todos não está melhor?
— Sim, sim… você tem razão… Felício. Meus irmãos poderiam ter pensado como você… Mas não sei, eles piraram…
— Seus irmãos, pois é…o barman me fofocou sobre a sua tristeza. Bom, eu conheci eles…é verdade que naquela noite que os conheci não me parece ser exatamente uma lembrança legal… Mas, nem tudo os livros de História relatam, né? Eu quero lhe contar daquela noite, quando estive frente a frente com eles… Qual o nome deles mesmo?
O barman se aproximou interrompendo por um momento a conversação dos homens da mesa 42. Trazia uma vaca preta para o Leonardo, e uma Brahma gelada para o mais velho. Ao ver a cara dos dois envolvidas de desconforto, voltou às pessoas para o balcão.
— O mais velho, na época 35 anos, se chamava Lucas, o outro, o mais avantajado e forte, Cilas… Sabe, não eram pessoas ruins, eu não sei o que dizer…
— Cilas, o mais fortão, né? A guerra é uma merda, jovem. Essa nossa guerra levou muita gente pra baixo da terra. De repente, pessoas conhecidas há anos passaram a se matar. Essas ideologias todas, essas religiões, quando pegam a gente, duro escapar delas…Foi necessário…estamos livres…
— Sim, ainda mais quando um líder populista hipnotiza o povo…
— Concordo, eles aproveitam a dificuldade e levam uma falsa esperança pra gente. Seduzem, criam inimigos e a merda tá feita… Bom, você falou do irmão mais fortão, né? Cilas, lembro dele…um homem de coragem, reconheço. Vamos lá, vou contar como conheci seus saudosos irmãos.
Leonardo estava tão preso à conversa que a sua sobremesa por pouco não se viu esquecida na mesa. Felício sinalizou para a taça, e o jovem sorveu o refresco escuro e açucarado. Suas orelhas pareciam aumentar o ângulo para melhor ouvir o companheiro de mesa.
— Naquela noite, 4 de maio de 2036, fui escolhido pela liderança da Resistência para fazer um levantamento de uma área adjacente ao local onde se suspeitava ser o Esconderijo do déspota Felipe Castro. Dois colegas me acompanham, um deles estudante de engenharia e o outro técnico agrimensor. O terreno que a gente ia levantar era vasto e fortemente protegido… Minha missão era localizar uma passagem pelos morros e encostas que faziam o papel de uma muralha do quartel general do governo. Lá pelas bandas do norte de Minas Gerais. Faltava pouco pra gente ganhar a guerra. A vegetação do local variava de distância a distância. As vezes árida, outras com pequenos arbustos, e alguns pontos além surgiam árvores maiores…
O barman retornou à mesa 42 trazendo uma garrafa de Brahma e uma soda com gelo até a tampa do copo. Fingiu limpar a mesa para alongar sua presença, e novamente foi alvejado pelos olhares daqueles misteriosos homens da última mesa do bar. Abandonou os dois com uma velocidade impressionante; os dois riam da situação.
— Bom, como ia falando, a gente tava indo bem. Três dias desbravando a área, esgueirando-se pela vegetação rude, espinhenta. Acho que mais rastejamos pelo chão do que andamos…que nem cobra. Algumas vezes a gente via soldados do governo patrulhando o território. Escondidos, a gente esperava o tempo que fosse preciso, até que eles saíssem pra longe.
Nossa missão era achar uma passagem para os combatentes da Resistência, homens e mulheres, de todo jeito, executarem um ataque sem defesa. Por nossas cabeças os drones voavam com suas câmeras espiãs. A gente carregava um aparelho que interferia o funcionamento daquelas geringonças voadoras. Mas não era cem por cento. Esconder ainda era o melhor a fazer. Essa disputa tecnológica foi acirrada entre as partes. A gente tinha nossos morcegos também. Mas o governo tinha muito mais equipamento. Muita grana se gastou para matar o próprio povo. Com a guerra cortaram o SUS até. Veja bem…
Leonardo interrompeu o seu locutor para um breve comentário.
— Putz, nessa época muita gente morreu. Os pobres, né?
— Sim, sim. Voltando ao relato. Era o nosso quarto dia. Agora a gente tava no pé dos morros. Naquele trecho a presença de soldados fascistas era muito maior. A nossa atenção e destreza seriam exigidas ao máximo. Exatamente as cinco horas da tarde achamos uma fresta por entre encostas de pedras, nos morros. O topógrafo anotou as coordenadas no seu diário de bordo, um caderno de papel mesmo. A orientação foi de não utilizar nada de eletrônicos, principalmente os de comunicação. Receio de interceptação. O governo era craque nisso. Portanto, não bastava achar o local certo, a gente precisava retornar com vida e com a informação. Como ainda era dia, decidimos permanecer escondidos nas aberturas das encostas até o anoitecer, quando daríamos o fora. Eu me recordo bem. Eu tava orgulhoso. Faltava bem pouco pra uma investida brutal da Resistência. E o tempo era curto.
Leonardo via o brilho nos olhos do Felício. Mas também extraia da expressão um tipo de pavor, de lembranças cruéis, talvez o vazio diante do inexplicável do absurdo. O combatente democrata, deu uma pausa na sua narrativa, virou dois copos de cerveja, um em seguida ao outro, estalou os lábios, retirou a espuma das bordas do bigode fininho, e deu sequência.
— Por volta das 7 da noite, começamos a preparar as coisas para reiniciar nossa retirada. O topógrafo, bocejou de sonolência, levantou-se e abandonou o esconderijo, sem preocupação. Foi mijar. Escutamos o som de um drone sobrevoando a área justo naquele momento. O mijão, com a calça nos joelhos e o pinto oscilando de um lado para o outro, se jogou para o buraco. Como ele foi ágil, achamos que o drone passou batido, nada registrando. Arrumamos as tralhas e descemos pelas pedras até alcançar a base, com cuidado, mas tranquilos, felizes pelo resultado positivo até aquele ponto. Retornar parecia ser o menor dos desafios anteriormente superados.
Seguimos pela margem da estrada, a fim de evitar um encontro direto com o inimigo. Mesmo com dor ao torcer meu pé nas rochas do morro, minha caminhada acompanhou o ritmo e a velocidade da marcha ágil dos meus colegas. Meia hora se passou e, enfim, pisamos no campo de arbustos secos e baixos, cuja flora espinhenta violentava constantemente as partes descobertas do corpo.
Quando alcançamos a metade da área árida fomos surpreendidos por quatro soldados do governo, numa inteligente emboscada. Dois deles eram os seus irmãos. O capitão do quarteto era um loiro de olhos azuis esbugalhados, nariz pontiagudo, e de estatura alta. O quarto elemento era uma soldada. Linda, cabelos ruivos e olhos da cor igual ao dos anjos das pinturas antigas. Nem a farda de traços masculinos tirava dela o aspecto torneado de seu corpo.
Se você a visse, jamais imaginaria a maldade daquela musa. Bom… Após eu bater meus olhos em cada um daqueles soldados do Felipe Castro, lancei minha atenção para seus irmãos. Pretos como eu, como você, lutando por um governo que via na nossa pele um ser inferior que devia ser exterminado, se possível. Bom, eu não entendi aquela loucura toda. Eu só queria sobreviver naquele pedaço de mundo, cercado de soldados armados, sem chance de fugir.
A gente se rendeu sem apresentar dificuldade. Jogamos as armas e mochilas no chão, ficamos ajoelhados como ordenou o capitão deles. A moça e um dos seus irmãos, não me recordo qual, rapidamente amarraram nossas mãos. Nossas vidas agora pertenciam aos nossos inimigos.
Eu sabia que muitos prisioneiros pegos pelos militares do governo foram executados sem qualquer melindre. Naquele lugar ermo, numa iminente derrota do governo, que se via a cada dia mais sufocado pela Resistência, fui tomado pelo pavor da morte, do fim da linha…É angustiante, acredite Vamos lá.
Foi naquela noite, naquele apavorante episódio, no campo árido e seco do norte mineiro, sob a luz fraca da Lua, que seus irmãos se depararam com a verdade que tanto se negaram a ver ou não conseguiam ver.
Dos três homens rendidos, eu era o único negro. O líder dos soldados do governo, o capitão, de sotaque forte do interiorano paulista, se me recordo bem, seu nome era Afonso, informou aos seus subordinados que levaria somente dois prisioneiros vivos para a Base, apontando para meus auxiliares.
Quanto a mim, o capitão, retirando uma faca de combate da bainha presa à cintura, vociferou: “Esse aqui vou fazer picadinho”. Caminhava lentamente em meu rumo, experimentado na ponta dos dedos a lâmina afinadíssima da sua bela faca de fabricação artesanal. Eu sentia o frio do metal me transpassando…juro que fui um soldado corajoso e destemido. Passei bons bocados. Mas ali diante daquele terrível superior imediato do governo, me despedi da Santa terra. Até beijei o solo na hora.
Era evidente que a fúria e a crueldade do capitão tinham motivações racistas. Não foi o acaso que aquele merda me mataria covardemente. E sem necessidade. Vi a desaprovação na face dos seus irmãos, o agitado movimento de seus olhos refletiam a confusão de sentimentos, o conflito interno instalado neles. Talvez tivessem ambos concluindo que a minha execução se daria não por eu ser inimigo, pois os outros dois prisioneiros também eram inimigos. Minha morte era por eu ser negro, e os meus colegas iriam sobreviver por serem brancos ou morenos de tom claro.
Um deles, o mais troncudo, o fortão, falou para o seu superior: “Capitão, o inimigo está rendido e não apresenta perigo. Ele pode ser útil para o serviço de informação do governo. Acho que…” O caipira lembrou ao soldado indisciplinado quem estava no comando ali. Ordenou que se calasse, e avançou sobre mim.
Encheu-me de murros e socos na cara. Cai no chão nocauteado, de mãos amarradas, apanhei muito, fiquei alguns períodos inconsciente. O meu carrasco era forte, e seus gestos delirantes denunciavam o sadismo doentio típico dos homens fascistas. A bela soldada gargalhava e incentivava a covardia do capitão. Para agradá-la, a ferocidade dos golpes aumentava. Seus irmãos ficaram de costas, não queriam ver a covardia, ou talvez se negavam a reconhecer a motivação meramente racial do agressor.
Não viram eu receber os golpes sem chance de defesa… Mas meus gemidos e gritos de dor invadiram seus ouvidos. Em um lapso de segundo, mesmo com os olhos inchados, vi que os dois se agitavam como quem receia antes de dar um passo no chão coberto de mato alto. Minha esperança era que meus gritos de desespero despertassem neles uma eventual fagulha de humanidade. Eles, seus irmãos, sabiam que minha eminente morte naquele pedaço de chão era por ser negro como eles…
Acho que o meu espancamento durou dez minutos, até quando o carrasco me deu como praticamente destruído. O capitão ajoelhou-se sobre o meu corpo na terra árida, e, sem dar conta dos seus homens negros, comentou em voz a alta algo sobre seu fascínio em cortar a carne de preto. Enfiou a ponta da faca na minha testa, atingiu o osso do crânio, e desceu lentamente a lâmina cortante pelo meu rosto, passando de raspão pela orelha, rasgando a ponta do meu nariz, e, movimentando a faca em curva, chegou ao meio do pescoço.
Eu gritava estrondosamente, entre as gargalhadas da mulher, que se aproximou para ver os detalhes da crueldade. De repente ouvi o som de um tiro, e sangue jorrou na minha cara. Meu carrasco tombou morto sobre mim. Pude ver, com a vista embaçada, a arma do negro troncudo soltando fumaça pelo cano.
O desfecho vingou segundos, quiçá, milésimos. A soldada agiu rápido, alvejando mortalmente seus irmãos. O troncudo teve a cabeça atravessada. O outro, a barriga. Teve tempo ainda de reagir, acertando a mulher em algum ponto das pernas, entretanto, o ferimento causado não a impediu de fugir.
Seu irmão baleado na barriga, sangrava muito, e morreu alguns minutos depois. Antes do último suspiro, se jogou sobre o corpo do negro morto, e após encontrar a mão do irmão, entrelaçou-a. Eu me encontrava caído bem ao lado deles. Ficamos cara a cara, muito próximos. Ele me encarou, e me disse, com a voz agonizante, aquelas que seriam suas últimas palavras. Eu ouvi bem: “Me desculpe.”
Eu e meus companheiros, usando a faca do capitão morto, nos livramos das cordas e demos fuga imediata. Não sei onde busquei força para aguentar caminhar uma longa distância, após ser violentamente espancado e ferido. Por sorte, os inimigos não descobriram o nosso objetivo de localizar a passagem pelos morros.
A soldada deu fuga e nada de importante conseguiu informar aos seus superiores da Base. Quando fizeram da gente prisioneiros indefesos, deram prioridade à violência feroz e gratuita sobre mim, e nem sequer investigaram as nossas intenções por perambularmos naquela região até então de domínio fascista. Eu e meus dois colegas tiramos a sorte grande. Sobrevivemos quando a morte era certa. E ainda cumprimos nossa missão. Seus irmãos me salvaram. Devo a minha vida a eles. E mais, se eu falhasse naquela missão era muito possível a guerra se estender por mais tempo e uma derrota da Resistência não era impossível ocorrer. Nossa logística já escasseava e a nossa força bélica logo deixaria de existir.
Eis a história toda que eu desejei compartilhar com você, jovem.
Ah, me esqueci, antes de eu deixar o local da emboscada, peguei as placas de identificação dos seus irmãos. Peguei também uma carta dobrada no bolso da jaqueta do fortão. Nunca desdobrei a folha, seu conteúdo está intacto. Tome aqui as placas e a carta…são sua… da família…As informações das plaquinha que me trouxeram a essa cidade. Eu vim pra cá pra de alguma forma agradecer meus salvadores. E foi muito bom te conhecer, jovem. De verdade.
Leonardo leu as inscrições nas plaquinhas, desdobrou a folha e leu as suas sofridas linhas. Seus olhos alagaram-se ao finalizar a leitura. Dobrou a carta novamente, e passou a esfregá-la sobre o seu coração. Felício o abraçou, experimentou como suas as lacerantes emoções do jovem, a sua dor sentimental. E logo vieram a leveza da redenção e a graça do perdão.
Para Leonardo, tomar ciência daqueles fatos envolvendo seus falecidos irmãos; ouvir de um combatente herói que seus irmãos salvaram a sua vida; que numa situação extrema, da tardia e inesperada tomada de consciência dos irmãos, essa sequência de sensações e sentimentos significou para o jovem a sentença de absolvição dos falecidos.
Aquela carta… Leonardo não falou do conteúdo que leu…contudo, o brilho de seus olhos denunciavam a natureza acalentadora e esclarecedora do texto que acabara de ler. Muito provavelmente, obteve as repostas daquelas perguntas que o perturbaram por anos.
— Obrigado, por me contar… Eu amava muito eles, eu me sinto leve agora. Foi um tempo sombrio. Acho que a sociedade toda deu bobeira…o câncer foi crescendo…e ninguém impediu…loucura, cegueira, ódio… Enfim…obrigado, mesmo, Felício. Quero que você conheça a minha mãe. Ela vai ficar muito feliz…
— Não sei quanto mal seus irmãos fizeram durante a guerra. Não sei se eles participaram das cruéis e covardes matanças de civis…sei lá… naquela noite, eles me salvaram. E se aquela mulher não tivesse atirado neles, seus irmãos teriam me acompanhado e lutado o fim da guerra ao nosso lado. Eu lamento muito… Bom… Se sou herói nacional, seus irmãos são os meus heróis. Um brinde a eles! Salve a democracia e a dignidade humana!
O jovem e o ex-combatente juraram um ao outro um pacto de amizade eterna, e assim se sucedeu. Com as faces secas e sorridentes, mudaram a conversa para assuntos diversos, mais leves, mais alegres, festivos. Falaram das mulheres, dos amores, da política, do futebol, da música, dos livros. Enfim, cuidaram das coisas pelas quais verdadeiramente vale a pena viver.
Leonardo pediu a permissão do Felício para chamar a namorada Vanessa e o seu melhor amigo, Anderson. Queria apresentá-los. Felício se recordou deles, os que ficavam o observando de esguelha na mesa vizinha. E vieram os amigos, tomaram seus lugares na mesa 42. Vanessa ao lado do namorado. Anderson, ladeou o até então estranho que causava arrepios nele.
A história foi novamente contada, agora para os ouvidos atentos dos recém-chegados à mesa 42. Vanessa, não se cabia de tanta felicidade, notando em seu namorado, e futuro marido, a paz habitando a sua consciência.
Anderson anotava os detalhes da história para um dia escrever sobre aquele surpreendente fato histórico, protagonizado por pessoas tão próximas, cujo absurdo arrastou para tragédias inaceitáveis. Vendo-se como um futuro escritor renomado, disse aos amigos que faltava ser esclarecido um ponto em aberto da história, para que o seu trabalho historiográfico fechasse sem lacunas. Fez uma pergunta ao ex-combatente.
— E a mulher ruiva, você a reviu depois da emboscada? Ela morreu?
Leonardo gostou da pergunta e insistiu ao seu novo amigo Felício para que contasse tudo o que sabia sobre o desfecho da soldada sádica.
— Eu guardei aquela faca na esperança de reencontrar aquela diaba, mas o destino não me deu esse prazer… Sim…ela morreu na Batalha do “Último Esconderijo”. Não dei fim nela, mas vi tudo. Tarsila, ah, Tarsila, uma das nossas soldadas. Tarsila representou bravamente nossa irmandade LGBT na Resistência.
É verdade que a mulher ruiva era linda. Tarsila é muito mais. Tarsila, a temida transguerreira… E que pontaria… uma digna Sniper de elite, à altura das russas de Stalingrado. Quando nossa frente conquistou completamente o território do “Último Esconderijo”, alguns soldados do governo deram fuga atravessando uma área baixa para atingirem os morros e promontórios da região. A ruiva era uma das centenas de soldados fascistas que corriam na tentativa de vencer o campo aberto e ganhar o escudo impenetrável das pedras.
Teriam conseguido se não fossem impedidos por nossos atiradores, em especial a Tarsila. Eu me encontrava bem ao lado dela… avistei a mulher ruiva correndo pelo campo, em zigue-zague. Contei para Tarsila sobre a crueldade e o sadismo daquela fujona. A atiradora fez uma piadinha com minha cara antes de manusear seu Fuzil Mosin-Nagant, M91/30 com mira telescópica, calibre 7,62 X 54 mm. “Vagabunda, deixou que ferissem meu negrinho lindo”.
Tarsila alvejou a ruiva cinco vezes. Primeiro feriu a perna direita… depois a altura do ombro… a moça ainda corria, arrastava a perna perfurada… Tarsila mirou na bunda…a moça tombou…se levantou desajeitada… e andou cinco passos lentos… mais um tiro, no joelho esquerdo… já não caminhava mais… parou e pedia ajuda aos seus colegas soldados, ninguém a ajudou, todos continuaram correndo para os morros… fim da linha… ela se virou para o nosso lado… Tarsila sorriu… apertou o gatilho… crânio explodido. “Esse é para o meu amorzinho Felício”. Depois, a atiradora derrubou mais uns dez adversários. Era o fim da guerra.
— Uau! Já sou fã da Tarsila!
— Eu também, eu também!
— Que história incrível. Vai facilitar o meu trabalho. Vou ganhar muito dinheiro. Se você confessar o romance com a Tarsila, ficará perfeito. Um romancinho é sempre apreciado pelo leitor. Um amor no meio do inferno. Hahahaha.
— Mas esse rapazinho é intrometido mesmo, hein?
— Hahahaha.
— Hahahahaha. Conta aí. O Anderson tem razão.
— Vou convidar Tarsila para nos visitar. Aí vocês perguntam pra ela. Pra falar a verdade, ela é uma heroína. Muito mais do que eu. Um brinde à Tarsila, a musa da Resistência!
— Uhuuuu
— Uma última pergunta, quer dizer, a última da noite…
— Tá bom… Tá bom… Manda escritor curioso!
— E o Monge X, você o conheceu? Dizem que foi ele quem matou o Presidente Felipe Castro e seus conselheiros principais. Ninguém até hoje sabe em quais circunstâncias o misterioso monge X lutou ao lado da Resistência…
— Sim, sim… eu não conheci o monge pessoalmente, mas ouvi muitos boatos sobre ele…muitos nem sabem, mas ele é brasileiro… e seu paradeiro é desconhecido atualmente…Sei lá, há muito mistério e segredo envolta dele. Talvez seja tudo lenda. Um mito. Um mês antes da batalha do “Último Esconderijo”, ele sozinho teria invadido o bunker e matado todos os chefes e o próprio Fipe Castro. Eram os boatos. Fiquei sabendo que alguém estava escrevendo a sua história. Em breve saberemos… Há um vídeo no YouTube em que o monge X luta com um gigante fascista, ex-campeão de MMA, conhecido como Neandertal, o guerreiro do americristanismo.
— Oh, escritor bisbilhoteiro, toma esses dois reais, bota na máquina de música. Quero ouvir “I see a darkness”, do Johnny Cash. Adoro essa triste canção.
***
O barman, o provocador de tudo aquilo, da prestação de contas com o passado, continuava sorrindo, e os clientes sentados no balcão não entendiam o que se passava na cabeça do bobo alegre. Um sorriso angelical, belo, de quem acabou de realizar uma boa ação. Quem o observasse naquele momento jamais perderia a esperança na Humanidade.
Leonardo, Vanessa, Anderson e Felício se dirigiam ao balcão para pagarem a conta. Os jovens deram tchau ao barman, e Felício também, contudo, o ex-combatente o fez com palavras estranhas e com extrema reverência, despertando a curiosidade dos jovens, quando ouviram as suas palavras de despedida e a respectiva resposta do barman.
Por muito pouco Anderson não iniciou mais um interrogatório. Deixou para a próxima oportunidade. Achou interessantes aqueles prováveis codinomes. Só queria entender onde o barman entrava naquela história.
— Até mais ver, camarada Haçane Saba, Líder Infante. Boa noite.
— Au revoir, valente Janizáro.
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