Lembra disso? Hulk contra o feminismo dos anos 70 - Recicla Leitores

publicado em:31/03/20 8:34 PM por: Alexandre D'Assumpção Alexandre D’assumpçãoHQThe Sumpa

Você já imaginou que algum dia fariam uma festa de caridade para o Hulk? Que uma feminista radical dos anos 70 lutaria contra o verdão de peito aberto?

Pois é. Isso aconteceu na edição 142 do personagem, em agosto de 1971, quando o Hulk foi parar em Nova Iorque e viveu uma das histórias mais absurdas de sua carreira.

Não sei se você sabe, mas o primeiro título do Hulk durou apenas seis edições que poucos gostaram, mas o personagem fez tanto sucesso quando passou a dividir a revista com Namor, o príncipe submarino, que acabou se tornando o dono do título a partir da edição 102. Naquela época, a Marvel era a queridinha dos universitários, o que forçou a editora a pesquisar as ideias e ideais da época para tornar seus personagens mais contemporâneos.

A história They Shot Hulks, don’t They? teve roteiro de Roy Thomas, lápis de Herb Trimpe e arte-final de John Severin, cujo pincel forte conseguiu deixar o traço de Trimpe mais interessante.

Um aviso nos diz que a história foi inspirada no livro Radical chique e o novo jornalismo Tom Wolfe, o que nos prepara para o absurdo que está por vir. Logo nas primeiras páginas, o Hulk chega em Nova Iorque, onde Reggie e Malicia, uma dupla da alta sociedade da época vê noticiais sobre o monstro verde e decide que essas histórias sobre sua monstruosidade são Fake News. Eles tem a ideia genial convidar o monstrão para uma festa de caridade e vão atrás dele ,que está na Estátua da Liberdade enfrentando seu velho inimigo, o General Ross.

Paralelo a isso, somos introduzidos a Samantha, a filha dos dois. Ela é uma jovem rica e engajada na segunda onda do feminismo, que briga com o pai porque ele não aceita suas ideias enquanto pede ao motorista da família que os leve para o lugar onde está o Hulk, que ela considera o pior dos porcos chauvinistas.

É interessante ver que os três personagens são retratados como caricaturas com discursos vazios. Quer um exemplo? Diante do aviso de um milico que tenta ajudar os três, afastando-os de um possível problema, como boa ativista violenta que é, Samantha joga o funcionário público no mar e segue com seus papitos em direção ao que muitos considerariam ser a morte certa, mas a versão dos anos 70 do Hulk parece ser ainda mais racional que os três malucos que vão em sua direção.

O casal tenta dialogar com o Hulk, mas é a menina que consegue falar com o gigante verde. Ela comenta que seus pais podem ajudá-lo a ter um canto onde nenhum soldado o persiga, afinal, ela sabe que ele não é o vilão que a mídia quer vender. Hulk, que gosta da ideia, decide acompanhá-los. Na verdade, ele confiou na loirinha, mas seu pai decidiu se aproveitar do verdão para ganhar mídia gratuita a seu favor. Furiosa, a menina decide reunir sua célula feminista para protestar contra a festa onde o gigante é apresentado como um animal de circo para burgueses entediados.

Apesar de não ter conseguido a atenção de seus pais, atraiu a de Encantor, que queria se vingar do Hulk, mas estava presa no limbo e não poderia realizar sua vontade. Como a menina aceitou de bom grado,a bruxa lhe deu uma palavra mágica. No momento que gritou Valhala, Samantha foi possuída pelo espírito da Valquíria. Paralelo a isso, seus pais conseguem uma doação de U$ 100 mil e entregam para o Hulk, que só vê um monte de papel e se irrita com isso.

A Valquíria invade o lugar gritando palavras de ordem feministas e ataca o Hulk. Os dois quebram a casa e continuam a luta na rua. Após usar um subterfúgio, ela consegue desacordar o Hulk e levá-lo até o topo do Empire State, onde Encantor manda sua controlada arremessar o monstro, o que ela faz, mesmo após dar uma titubeada.

No final, o tempo da magia acaba, os dois voltam ao normal e Samantha comenta com Banner sobre um sonho que teve.

Que história foi essa? Socialites entediados realmente são capazes de tudo, mas levar um monstro perseguido pelos militares pra casa e os militares deixaram de boa? Roy Thomas cheirou ou tentou debochar dos temas?

Como eu havia dito antes, naquele tempo, a Marvel era a editora que falava a língua de seus leitores e Stan Lee vivia dando palestras em faculdades, de onde pegava emprestado várias ideias para a editora. Já Roy Thomas, era um dos muitos roteiristas Hippies e cheios de ideias inovadoras que entraram na editora a partir da segunda metade dos anos 1960. Dois grandes ideiotas que resolveram fazer uma salada verde intragável.

E o que estava mais em moda em 1970 do que o Radical Chic, conceito supostamente criado por Tom Wolfe? Quem?

Tom Wolfe, que aparece duas vezes na edição, é um famoso jornalista cujos textos tinham um tom debochado e sarcástico. O livro que inspirou a história é uma coletânea de ideias do autor, principalmente seu estudo sobre a forma como os novos jornalistas estavam usando situações fictícias para deixar seus textos mais interessantes. Num de seus livros, ele comentou sobre os mitos modernos, principalmente o Doutor Estranho e suas histórias que mais pareciam viagens de ácido, o que fez com que Thomas, roteirista do personagem na época, perguntasse ao autor se ele não se importaria de ser retratado numa aventura do personagem. Como o jornalista aceitou, a edição 180 de Strange Tales mostrou um encontro do Mago Supremo e de sua protegida e amante com Wolfe durante a celebração novaiorquina de ano novo. Thomas e ele trocaram algumas cartas sobre a ideia de levar uma crítica social, lembrando que no universo Marvel Ninguém era mais socialmente oprimido que o verdão, o que motivaria uma festa de arrecadação de fundos que Wolfe cobriria.

A história foi inspirada numa das cronicas do livro , que narra o encontro entre a elite endinheirada e o Partido dos Panteras negras. Thomas teve a ideia genial de fazer o mesmo, como o Hulk bandeando para o lado dos negros em algum momento, entretanto, acharam melhor e mais seguro incluir o feminismo. Afinal, mulheres queimavam sutiãs, não bombardeavam editoras.

O problema foi como retrataram a bola da vez. Nos anos 60 e 70, o feminismo foi um dos mais fortes movimentos sociais, garantindo um monte de direitos às mulheres que foram pras ruas protestar. Qualquer outra proposta que não fosse adaptar o conceito explorado no livro do jornalista seria uma faixa bônus, só que..

Mostrar as ideias de ativistas como Marilyn Webb e da jornalista Gloria Steinem? Pra que, né? Samantha, a feminista em questão é uma riquinha mimada e histérica, uma rebelde que adota uma causa “diferentona” para irritar os pais, a típica comunistinha de faculdade. Uma personagem tão vazia quanto seus pais que acrescentava nada à causa da época. Sim, ela foi empoderada para lutar contra os porcos chauvinistas e enfrentou o macho alfa da vez, mas quem se importa? Eram só os caprichos de uma desocupada endinheirada. Eles só queriam brincar com um conceito e criar uma história que mais parecia uma sátira da revista MAD. Junte isso ao fato de que poucos leitores entenderam o que os autores realmente quiseram dizer naquela história absurda e temos a aventura do Hulk que todos os editores tentaram varrer para debaixo do tapete, uma das histórias mais esquecíveis do mundo.

Felizmente, Wolf não parou de escrever e produziu clássicos do século XX como o livro Fogueira das Vaidades que em 1990, ganhou um filme estrelado por Tom Hanks, Bruce Willis e Melaine Griffth. Quer conhecer um bom derivado das ideias do autor? Assista ao filme.

Lá nos EUA, a história é parte de todas as coletâneas desta fase do Hulk, felizmente, no Brasil, ela só foi publicada uma vez, em O Incrível Hulk 16 da Bloch com o título: O Hulk foi feito para morrer? Na mesma edição nacional temos a história O Curto Reinado do Hulk , que na verdade, é a famosa: O Monstro no Coração do Átomo (primeira aparição da Jarella) escrita por Harlan Ellison, que foi republicada pelas editoras RGE e Abril e a primeira aparição do Doutor Sansão, que até o momento, só foi republicada pela RGE.

Artigo original no Canal Metalinguagem em 30 de março.



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Alexandre D’assumpção, ou The Sumpa, é praticamente inofensivo. Professor Nerd, redator, roteirista de quadrinhos e audiovisual, ele pediu carona para uma cabine azul em 1989 e desde então vive aventuras através do espaço/tempo. Para facilitar a viagem, tornou-se mestre Zen na arte de ter um rosto tão comum que todos sem sempre o cumprimentam imaginando se tratar de outra pessoa, normalmente dele mesmo. Dono de uma péssima memória, ele nunca se lembra de detalhes importantes como rostos, grupos que passou e inimigos que ameaçam sua vida, o que é péssimo quando ele os encontra em becos escuros. Sua toalha é customizada e ostenta a máscara da Iniciativa Gambate, empresa criada por ele para levar a cultura Pop aos mis distantes rincões do universo. De tempos em tempos ele reverte a polaridade de sua chave de fenda sônica e aparece em eventos, festivais e até na TV. Além do Metalinguagem, ele pede carona nas naves Impulso HQ e Casa do Medo (entre outras).