LOBISOMEM EM GAVIÃO PEIXOTO - Recicla Leitores
Lembro-me perfeitamente daquela tarde de maio, eu estava retornando da escola e, ao virar a esquina da rua da minha casa, na Rua Getúlio Vargas, vi um caminhão de mudança em frente à casa vizinha da minha, até então desocupada. Passando pelo portão, pude ver alguns homens carregando a mobília para dentro, e no quintal um adolescente como eu brincava com uma bola de capotão, mostrava inclusive ser dono de uma habilidade incrível com a pelota. Um adulto falava com ele; dias depois, fiquei sabendo que se tratava de seu pai. Sua mãe, só vi um tempo depois. Eu jamais poderia supor que aquele menino, seu pai e sua mãe seriam pessoas extraordinárias que passariam pela minha vida. O primeiro, de cara percebi que seríamos grandes amigos, e de fato o tempo mostrou-me que a minha intuição não errara. O segundo, o pai, foi o meu primeiro contato com algo profundamente sobrenatural. E a mãe, meu primeiro amor platônico.
Se o leitor tiver paciência e tempo, poderá acompanhar esta extraordinária estória, que narrarei com o devido zelo e cuidado nos detalhes. Não pense que exagero nos fatos, nas descrições e nas conjunturas, pois a realidade é muito mais fantástica do que o alcance descritivo da minha pobre linguagem!
Eu sempre acreditei no livre-arbítrio, e para mim a vida é uma espécie de grande rio que flui pelo tempo que nos basta, mas sem margem definida. Contudo, há certas coincidências que acontecem em nossas vidas que nos fazem duvidar dessa existência livre, leve e solta. Muitas vezes eu me sinto parte de um livro feito e acabado, onde minhas ações e as situações pelas quais vivencio estão todas determinadas por um Ser Maior. Somos meros personagens do alfarrábio chamado Vida! E assim foi o que se sucedeu com o surgimento da minha grande amizade com Rodrigo, pois o fato de ele vir a ser meu vizinho pode até ser mera coincidência, mas passar a estudar na mesma escola, na mesma sala, e gostar praticamente das mesmas coisas, como, por exemplo, ser fã de Conan, O Bárbaro e colecionador de gibis do grande guerreiro, não! Não pode ser mera coincidência, há de existir uma explicação mais plausível, embora inverossível para nossa vã sabedoria!
No outro dia, quando entrei na sala de aula, seguindo para a minha turma do fundão, fui surpreendido com Rodrigo sentado na minha carteira – sei que não somos donos das carteiras de sala de aula, mas há uma regra costumeira que nos garante ao menos a posse anual de forma pacífica –, de modo que muito educadamente lhe dirigi a palavra informando da indevida ocupação. Ele me pediu desculpas, sorriu e se levantou. Nesse momento, informei que a carteira ao lado não tinha “dono”. Ali ele se sentou e então passamos a ser vizinhos de casa e de carteira de sala de aula. Um tempo depois, vivíamos grudados como o carrapato no cachorro.
Na primeira semana da vinda do Rodrigo para Gavião Peixoto, a professora passou um trabalho para fazer em dupla, cujo tema era Dom Pedro II, o último imperador que governou o Brasil antes da Proclamação da República, em 1889. Rodrigo olhou para mim e perguntou se podíamos fazer juntos. Aceitei o convite, mas eu não queria dar o braço a torcer que gostava dele, falei que seria mais cômodo, afinal, éramos vizinhos. Combinamos de fazer o trabalho na casa dele, pois seu pai tinha um computador e isso facilitaria muito o nosso trabalho. No dia seguinte, fui à casa de Rodrigo, e foi então que conheci sua mãe, senhora Denise, uma mulher linda, maravilhosa, muito educada, inteligente e religiosa fervorosa. Confesso que me atraí fisicamente por ela, passou a habitar meus sonhos inconfessáveis, delírios libidinosos de um adolescente. Estávamos diante do computador digitando o nosso texto, logo após uma árdua pesquisa sobre Dom Pedro II na biblioteca da escola, quando a mãe do Rodrigo chegou e nos agraciou com suco de caju. O suco estava doce e delicioso, ela realmente sabia conquistar um homem, apaixonei-me ainda mais. Rodrigo que me perdoe, mas quem mandou ter uma mãe tão linda?! No fim da tarde, o pai do Rodrigo chegou e fomos apresentados. Ele era um homem bonito, forte e tinha os olhos mais verdes que já vi na minha vida. Era uma pessoa gentil, mas falava pouco e passava a sensação de que sempre desconfiava de tudo. Retornei para a minha casa com o sentimento de dever cumprido, nosso trabalho ficou muito bem elaborado, o otimismo tomou conta do meu espírito, com certeza tiraríamos a nota máxima. No outro dia, a minha previsão foi confirmada, nosso trabalho ficou com nota A. Rodrigo me disse: “Somos uma dupla genial, toca aqui!”. Tínhamos mandado muito bem mesmo.
Estudávamos de manhã, de modo que praticamente tínhamos a tarde toda para fazer lições e brincar. Nossa diversão preferida era andar de bicicleta pelas ruas de Gavião Peixoto. Descíamos a Rua Marechal Isidoro, subíamos a João Pessoa e parávamos no Mercado dos Turcos para comprar guloseimas. Conhecíamos todas as árvores frutíferas da cidade. Havia um pé de amora na Rua do Sapo. Era a coisa mais linda, toda vermelha de seus frutos, o que combinava com o verde vicejante de suas folhas. Sua composição gerava uma ampla sombra fresca. Ficávamos horas debaixo da amoreira, comendo as frutinhas e batendo papo, tirando uma soneca.
Numa sexta-feira, a cidade toda amanheceu amedrontada. Segundo relatos, na madrugada de quinta para sexta havia ocorrido a aparição de um lobisomem, que inclusive deixou arranhões em troncos de árvores. A imprensa regional, o canal de TV, apareceu na cidade, ouviram pessoas, muitos testemunharam terem visto um monstro meio homem, meio lobo correndo pela rua, uivando. Os cachorros ladravam loucamente, era impossível dormir. Um dos relatos dizia que a porta de madeira de sua casa estava toda arranhada. Havia um filho recém-nascido, e lobisomem gosta de se alimentar de sangue de pessoas não batizadas. De sorte que na parte de cima da casa, encostado ao telhado, havia uma estrela de Davi, aquilo repeliu o lobisomem da porta da casa. Ouvi esse relato na padaria, muito frequentada por pescadores que vinham das cidades vizinhas tentar a sorte no Rio Jacaré Guaçu. A aparição do lobisomem causou tumulto na cidade, o padre, os pastores, todos fizeram um movimento pró-batismo. Parecia até que a encrenca toda não passava de jogada de marketing dos religiosos. Naquela época, eu não sabia nada das armadilhas do mundo e suas ilusões. Hoje sei perfeitamente que o alicerce de toda religião é o medo.
Rodrigo e eu estávamos, como de costume, usufruindo da sombra fresca do pé de amora, conversando sobre o “tar lubisome”, e de repente ele me disse, com meia dúzia de amoras na boca:
— Engraçado… Eu me mudei diversas vezes de cidade. Em todas elas ouvi o relato de um lobisomem.
Ficamos alguns minutos em silêncio e então eu disse:
— Será que seu pai é o lobisomem? — Caímos na risada e fomos embora para nossas casas. Eu não aguentava mais comer amoras.
No outro dia de manhãzinha, o telefone tocou em casa, era Rodrigo. Minha mãe me acordou para eu atender. Atendi e Rodrigo falou em tom misterioso: “Preciso falar com você urgente, me encontre no pé de amora às quatorze horas”. E desligou o telefone. Eu fiquei atônito. O que seria? Será que ele vai se mudar novamente?, eu perguntava para mim mesmo. Acho que não, ele quer me pregar uma pegadinha. Éramos vizinhos, poderíamos sair juntos para ir ao pé de amora. Ele devia estar de sacanagem. Seria triste se ele fosse embora do nada, nossa amizade era incrível. Meu único amigo daquela época. Sem contar o lance da mãe dele e o melhor suco de caju do mundo. Eu não sei se suportaria uma ruptura brusca.
O fato é que eu fui pontual no horário, e na hora acordada eu me encontrei com Rodrigo sob a sombra fresca do pé de amora, na Rua do Sapo. Ele estava um pouco apreensivo e eu disse para ele contar de uma vez o que estava acontecendo.
— Daniel, ontem você falou algo e eu fiquei pensando a noite toda sobre — ele me disse com a voz embargada.
— Eu peço desculpas se falei algo desagradável, você é meu melhor amigo e…
— Não, não, fica tranquilo. Você me disse brincando sobre o meu pai ser o lobisomem. Nunca pensei nisso, mas será pura coincidência toda cidade que passamos ocorrer aparição de lobisomem? O que explica meus pais se mudarem do nada dessas cidades, sem motivo explícito algum? E a minha mãe, a todo o momento rezando para a salvação do meu pai? Daniel, quero que você me ajude a descobrir a verdade. Posso contar com você?
Minha mente foi tomada pela imagem dos olhos verdes do pai de Rodrigo. Comecei a tremer, não podia ser, não, lobisomens não existem, é lenda. Eu estava com medo. Rodrigo me observava aguardando a minha resposta, e eu me mantive em silêncio.
— Acho que não posso contar com você… — disse ele, em um tom de desapontamento.
— Sim, pode, lógico. Mas não sei nada sobre lobisomem — eu disse a ele com firmeza.
— Para isso existem os livros!
Eu não podia acreditar que ia investigar um caso de lobisomem com meu melhor amigo. Era algo fantástico e ao mesmo tempo amedrontador, mas no fundo eu esperava uma grande aventura. Que adolescente não gosta de grandes desafios? Rodrigo tirou de sua bolsa de bordo da bicicleta um caderno e uma caneta e começamos a planejar os passos de nossa missão investigativa. Codinome Operação Lobo de Olhos Verdes, sugerido por mim. Fiquei muito lisonjeado quando meu amigo aceitou o nome, de certa forma me senti importante. Como toda operação investigativa, ela correria em sigilo, afinal, não sabíamos exatamente com o que estávamos lidando. Poderia ser tudo conversa fiada, mas estava descartada a hipótese diabólica da coisa.
Nosso primeiro passo foi se inteirar sobre o lobisomem, não especificamente o que assombrou a nossa pequena cidade Gavião Peixoto, mas de forma geral. Lobisomens apareciam em várias cidades e diversas regiões do Brasil e do mundo afora. Havia filmes americanos sobre lobisomens. Utilizamos o método dedutivo em nossa investigação, do geral para o particular. Foi uma sacada interessante do Rodrigo, método dedutivo, nunca mais esqueci essa parada. Ela pode te levar à verdade ou ao nada, mas felizmente funcionou para nós.
Naquela época, a biblioteca da escola abria aos sábados. Ficava no porão do prédio, um lugar inóspito, fétido; quanto mais você entrava no porão, mais baixo o forro ficava, até você ser obrigado a andar como um corcunda. Eu sempre pensava naquilo, como podem, esses filhos da puta, diretores de escola, instalar uma biblioteca em um local tão asqueroso como aquele. Acho que era mais um ato sabotador da aquisição de conhecimento. “Livros libertam”, disse um dia algum comuna. Governo tem medo de quem lê. Toda ditadura de pilantras militares proíbe livros. Esses canalhas devem ter sido professores dos diretores de escola que pouco se lixam com a qualidade do ensino.
Eu e Rodrigo já estávamos com dor nas costas, vasculhando as profundezas da biblioteca na parte mais funda e perigosa do porão, ratos passando por entre nossas pernas, quando achei um livro velho, de muitas páginas, intitulado Geografia dos Mitos Brasileiros, cujo autor é Câmara Cascudo. O livro estava empoeirado, mas assoprei sobre a capa, devolvendo a dignidade daquele sábio alfarrábio. Eu tinha certeza, encontrara o que tanto procurávamos. Fui direto ao sumário de capítulos e referência de palavras.
— Achei, Rodrigo! — gritei com toda a empolgação do mundo. Meu grito despertou não só o meu amigo, mas os ratos, que começaram a se agitar por baixo das prateleiras. — Vamos dar o fora daqui!
Eu sempre tive facilidade com a Língua Portuguesa, já Rodrigo tinha facilidade com os números, com a temida Matemática. Coube-me levantar as informações dadas pelo livro do Câmara Cascudo, resumindo o texto em relatório. Confesso que apanhei bastante, o autor era erudito, vi-me diante de palavras nunca imaginadas por mim antes. Foi sofrido, mas meu pequeno Dicionário Aurélio me socorrera nos desafios linguísticos que enfrentei com dedicação. Contudo, a elaboração do relatório sintético me exigiu dois dias de constantes leituras e apontamentos. Rodrigo quase pirou, mas eu sabia da minha responsabilidade, destrinchei capítulo por capítulo daquele livro. Muitas vezes um trabalho intelectual exige tanto ou mais energia que uma atividade braçal. Nosso cérebro consome cerca de trinta por cento de nossas energias diárias. Enfim, foi algo gratificante para mim, conheci a riqueza de nosso folclore e suas ligações com os povos que contribuíram com a formação do povo brasileiro. Mas Rodrigo tinha outras preocupações, em especial com o mistério do Lobisomem em Gavião Peixoto, e, mais especificamente, onde seu pai entrava nessa.
Não pense que Rodrigo não produziu nada em favor da nossa operação nesses dois dias de leitura. Ele obstinadamente vasculhou tudo o que era do pai dele, armários, gavetas e pastas. Não encontrou nada que indicasse algo de lobisomem, nenhum indício. Ficava ouvindo, sorrateiramente, a conversa de seus pais atrás das portas. A única coisa que escutou foi uma sucessão de gemidos de sua mãe numa noite acalentada do casal. De resto, nada que interessasse à nossa investigação. No entanto, havia um apontamento interessante, seu pai apresentava diversas cicatrizes pelo corpo. Aquilo era no mínimo suspeito, mas isoladamente era um dado sem valor probatório, digamos assim. Uma pequena peça do quebra-cabeça, disse-me Rodrigo. É, concordei, e anotei no meu relatório, afinal, um pequeno detalhe pode solucionar um intricado caso. Aprendi isso assistindo Kojak, o detetive careca que tinha mania de chupar pirulitos. Eu amava aquela série. No outro dia, eu apresentaria meu texto ao Rodrigo, em nosso escritório, pé de amora na Rua do Sapo.
Gavião Peixoto continuava assustada com a história do lobisomem. Novos relatos surgiam, brotavam como ervas daninhas pelos bares e esquinas da cidade. Os fofoqueiros de plantão lançavam suspeitas sobre alguns moradores da cidade simplesmente por serem peludos e fortes. Vi o quanto a superstição pode levar as pessoas à loucura e ao mal. Jogaram estrume na casa de um suspeito. Não havia método, não havia planejamento, havia apenas maldade e escárnio nas ações das pessoas. A imprensa sensacionalista chegou a filmar o badalo do sino da igreja indicando meia-noite. Saiu em todo o Brasil. Gavião Peixoto ficou famosa, muita gente veio da capital, trezentos quilômetros, para conhecer a famigerada Cidade do Lobisomem. De certa forma, nós nos orgulhávamos de ver nossa cidade no noticiário nacional, se bem que o pessoal da capital achava aquilo tudo ridículo, coisa de caipira. O maior problema foi que nossas vidas começaram a sofrer as consequências. Nada de moleque ficar até tarde na rua; dez horas era o limite estabelecido por meus pais. Agora a nossa investigação passou a ter um caráter de interesse público. Íamos até o fim, senão a restrição da nossa liberdade pioraria cada vez mais.
Volvendo a nossa história e seu desenvolvimento, no outro dia me encontrei com o Rodrigo em nosso escritório. Li o relatório e ele prestou uma atenção nunca vista antes, estava mesmo determinado a descobrir a verdade. A síntese foi nesses termos:
– O lobisomem é o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas;
– A transformação do homem para fera se inicia a partir dos treze anos de idade, numa terça ou sexta-feira, da meia-noite às duas da madrugada;
– O lobisomem tem de fazer a sua corrida visitando sete cemitérios, sete vilas, sete encruzilhadas, até regressar onde se transformou para readquirir a forma humana.
Essas eram as características do Lobisomem Paulista. No Sul do país, a justificativa para virar lobisomem era outra: o homem que tenha tido relações impuras com as comadres, irmãs. Ser lobisomem era um castigo por ligações sexuais impróprias.
O processo de cura do encantamento maligno era o Lobisomem ser cortado por uma faca e sangrar. Anotei em meu relatório inclusive um trecho citado por Câmara Cascudo, constante da obra O Livro dos Fantasmas, de Viriato Padilha. É assustador:
“É crença geral que, se fazendo sangue na pessoa, quando ela se acha transformada nesse animal fantástico, o Diabo vem lamber o sangue, considera-se pago de seu dízimo, e a pessoa isenta-se de seu sombrio fadário.”
Rodrigo se arrepiou todo ao ouvir o relatório até o fim. Caiu a ficha sobre o perigo e as forças obscuras que estávamos determinados a enfrentar. A coisa era diabólica demais, talvez não seria prudente seguir adiante. No entanto, como sempre, ele me surpreendeu. Rodrigo era realmente maluco, e malucos se entendem muito bem. Acho que aí residia o segredo de nossa grande amizade em tão pouco tempo. O fato é que havia um lobisomem amedrontando a região de Gavião Peixoto e alguém precisava fazer algo.
Nosso passo seguinte foi ir até o local onde supostamente o lobisomem havia deixado arranhões em árvores e atacado galinhas, sugando todo o sangue das aves; Lobisomem é um ser hematófago, se alimenta de sangue. Conversamos com o proprietário do imóvel, um senhor muito conhecido na cidade, e ele nos deixou analisar as árvores. O terreno era imenso, um quintal grande com um pequeno galinheiro, uma horta e uma espécie de bosque de dezenas de árvores. Havia também aos fundos algumas casas que ele alugava; na época, duas ou três famílias moravam ali. Quando bati os olhos nos arranhões, percebi que tudo aquilo não passava de uma farsa, um truque. Os tais arranhões com certeza eram riscos feitos com algum metal pontudo, talvez uma chave de fenda ou mesmo um garfo grande. Não havia vestígios de pelos ou sangue, nada que demonstrasse que de fato uma besta-fera tivesse feito aquelas marcas.
Chamei o proprietário de lado e Rodrigo falou para ele sobre nossas suspeitas, então o proprietário do imóvel, coçando o queixo, nos levou ao galinheiro e mostrou uma galinha morta, seca, sem sangue, com furos no pescoço. Não saímos convencidos mesmo diante da brutalidade sofrida pela galinha, afinal, a mordida de um lobisomem destraçaria por inteiro uma ave daquele porte. Algo terrível deve ter acontecido com aquela galinha, mas não tinha a ver com o lobisomem. Fomos conversar com o Policial Militar que acompanhou os fatos logo após o ocorrido, o Cabo Jaime. Ele fazia pouco caso da história, não acreditava em nada daquilo, no entanto, constou o relato dos moradores no bojo do Boletim de Ocorrência. Para aquele experimente Policial, tudo não passou de uma armação para assustar algum dos inquilinos que estava com o pagamento de aluguel em atraso. Somando à fraqueza dos indícios que levantamos no local, a versão do Policial era crível. Mas aquela galinha ressequida, sem sangue, com duas perfurações no pescoço não saiu nunca mais da minha memória. Pobre ave.
Nós estávamos numa quarta-feira, em dois dias muito provavelmente ocorreria uma nova aparição do lobisomem, na madrugada de quinta para sexta-feira. Rodrigo ficou de espiar o seu pai, ver se ele ia sair de casa por volta da meia-noite. Naquela época, não havia celulares como hoje, de modo que nos falávamos por rádio amador, o famoso PX, muito comum entre caminhoneiros. Para ninguém nos ouvir, usávamos um canal incomum, mas não era impossível de alguém sem querer interceptar a nossa conversa. Se conseguíamos ouvir o canal da Polícia, nos interceptar era praticamente muito simples. Éramos garotos de sorte, ninguém nunca nos ouviu.
Quando faltava meia hora para a meia-noite, Rodrigo me chamou no PX:
— Daniel, está em Q.A.P?
— Sim, Q.R.V.
— Meu pai está se trocando para sair, estou com medo.
— Mantenha a calma e não tente perder detalhe algum. E a sua mãe?
O rádio começou a chiar, alguma interferência.
— Q.R.N. Ainda consegue me ouvir?
O sinal caiu, o silêncio me congelou. Depois de alguns minutos, recebi nova mensagem de Rodrigo:
— Q.S.M?
— Sim, me relate os fatos.
— Bom, meu pai está saindo de moto. Minha mãe está diante de suas santas e santos rezando numa língua por mim desconhecida. Parece espanhol, algo assim.
— Vou para a esquina ver para que lado seu pai vai, aí podemos nos certificar se ocorrer algo no rumo que ele tomou.
— OK. Tome cuidado, faltam cinco minutos para meia-noite. Não sei mais quem é meu pai, minha mãe, estou com muito medo, mas vamos adiante. Desligando aqui, boa sorte.
Foi uma loucura total! Abri a janela do meu quarto sem fazer barulho, pulei para fora, venci o muro num salto e logo estava na calçada. Ouvi o som da moto, corri para a esquina e dei de cara com o pai do Rodrigo. Este, ao me avistar, parou diante de mim e levantou a viseira do capacete. Seus olhos verdes pareciam arder, me parecia que estava se transformando. Ele gritou:
— Vá para a sua casa agoraaaaaaaaaaaaa!!!! — E partiu sentido ponte do Tambaú, uma das cinco saídas da área urbana de Gavião Peixoto.
O badalo da meia-noite soou. A cada badalada de doze, os cachorros enlouqueciam, uivavam, choramingavam, alguns brigavam. Minha cabeça rodou e eu corri como uma seriema para casa. Tentei contatar o Rodrigo novamente pelo rádio, mas não havia sinal. Rezei milhares de vezes o Pai-nosso e só fechei os olhos por volta das cinco da manhã. Como dormir com a sandice geral dos cachorros, uivos que se confundiam? Eu só pedia a Deus que ninguém se machucasse, muito menos meu amigo. Agora até a mãe dele me dava arrepios de terror. Reza em língua estranha? Isso me fazia lembrar daqueles filmes horríveis de exorcismo.
Quando amanheceu o dia de sexta-feira, a única coisa que eu queria era ouvir a voz do meu amigo, saber se estava tudo bem. Minha mãe me acordou, viu os meus olhos fundos de quem não dormiu bem, mas não me poupou de ir à escola. Levantei-me da cama, fui para o banho, tomei café, preparei o lanche e segui para meus afazeres educacionais, sem qualquer notícia do meu amigo. Em regra, a gente se falava pelo rádio de manhãzinha, antes de sairmos para a escola. Naquela manhã, só silêncio e nada mais. Ao passar pela casa de Rodrigo, vi que a moto de seu pai estava no quintal, o que significava que ele retornara em vida de uma para lá de macabra e sangrenta madrugada, imaginava eu. Arrepiei-me todo só de imaginar em quais situações ele chegara.
Eu não via a hora de me encontrar com meu amigo no pátio da escola. Acelerei o passo, meu coração batia mais forte, acelerado, eu realmente estava com medo, ao mesmo tempo, curioso dos últimos acontecimentos, que até aquele momento eram só mistério para mim. Tudo se agravava com o silêncio de Rodrigo desde o momento em que seu pai saíra de moto um pouco antes da meia-noite. Mas confesso que todo o terror que me afligia gerava um estranho êxtase em meu espírito. De certa forma, aquele suspense nos envolvera por inteiro, como um nevoeiro encobre os cimos das serras. Agora só nos restava vencer as forças ocultas do mal. Imaginei-me no lugar de Rodrigo, de repente descobrir que meu pai era um ser amaldiçoado, filho das mais profundas maldades do inferno, uma besta-fera a serviço do próprio Diabo. Atravessando a praça central de Gavião Peixoto, diante da Igreja, fiz o sinal da cruz e pedi a proteção de Deus para mim e toda a cidade. Ao mesmo tempo, uma senhora com nítidos problemas mentais passou por mim me olhando e rindo da minha cara, falando palavras desconexas, mas entendi algo: “Cuidado com a escuridão!”. Saí em disparada, e quando cheguei em frente à escola, a viatura da Polícia vinha descendo. O Policial, Cabo Jaime, o mesmo do incidente das árvores, parou o Fusca e me chamou:
— Ei, garoto, venha cá. — Ele estava acendendo seu cigarro Camel. — Tenho novidades para você!
Aproximei-me da viatura e ele contou a novidade.
— Teu lobisomem atacou novamente, na estrada do Tambaú. Desta vez, ele atacou uma sede de um sítio, mas não conseguiu entrar na casa. A estrela de Davi o espantou. Mas matou dois grandes touros. Assim que terminar a aula, desce lá na delegacia, mostro para você as fotos que tirei. O João da Farmácia está revelando as fotos, acho que ficam prontas até a uma da tarde. — Ligou a viatura e desceu a Rua Amélia Peixoto.
Corri para dentro da escola, passando por entre as folhas do portão que por pouco não havia se fechado. Fui repreendido pelo zelador, mas não dei bola, caminhei a passos largos direto para a sala de aula. A professora já estava fazendo a chamada e mais uma vez no mesmo dia letivo tomei um “pito”. O pior foi constatar a ausência do Rodrigo. Alguma coisa estava acontecendo, algo terrível, cogitava eu com meus botões. No entanto, não havia o que fazer senão aguardar o fim das aulas. Fiquei disperso, era como se eu sequer estivesse ali, e o tempo agora parecia ser a eternidade. O que será que aconteceu com meu amigo? A lacuna me inculcava, por pouco não abri a boca para chorar, mas me detive; algo me dava forças para suportar a labareda da angústia, uma labareda fria que nos queima a alma.
Quando o sinal de saída tocou, eu já estava no meio da praça. Ofegante, corri o máximo possível até a casa de Rodrigo, vizinha da minha. Não havia ninguém na casa, nem meu amigo, nem seus pais. Em desespero, entrei em minha casa. Minha mãe já me gritava para o almoço, bati a porta do meu quarto e me fechei, estava prestes a entrar em pânico quando vi um bilhete sobre a minha cama, provavelmente jogado pela janela. Era do Rodrigo. Ao ler, minha alma se acalmou…
“Daniel, está tudo bem comigo. Meu pai retornou na madrugada com um corte profundo no braço, mas nada de risco. Fui com a minha mãe e ele para o hospital fazer pontos no corte, em Araraquara. Estou de volta à tarde. Nossa investigação está indo muito bem. Abraço.”
Só me restava aguardar o seu retorno.
Almocei com a minha mãe e depois desci até a delegacia para ver as fotos dos touros atacados pelo lobisomem. Embrulhei o estômago ao bater os olhos naquelas fotos, no total de dez. A barriga dos bois estava estripada, os olhos furados, o pescoço mordido diversas vezes, quase se desprendendo do restante do corpo. Foi um ataque feroz, sangrento, inenarrável, sem chances para os bovinos. O Cabo Jaime me disse que dera alerta vermelho para todos os destacamentos policiais das cidades circunvizinhas, porém, as autoridades policiais não tratavam aquilo tudo como algo diabólico, mas consideravam que poderia se tratar de algum incipiente psicopata, um serial killer em potencial, treinando para futuros alvos humanos. Eu, contudo, não falei nada a respeito da minha investigação com o Rodrigo, a Operação Lobo de Olhos Verdes. Para mim, não havia dúvidas de que estávamos mais próximos da solução do caso do que a Polícia.
De tardezinha, ouvi o carro da família do Rodrigo chegando, espiei pela fresta da janela e vi o pai dele com uma mancha alaranjada enorme no antebraço direito, muito provavelmente era antisséptico sobre o ferimento. Todos aparentavam tranquilidade, então minhas preocupações foram pouco a pouco se dissolvendo. Em dez minutos, o Rodrigo me chamou no rádio PX e combinamos um encontro no escritório pé de amora, às dezessete horas em ponto. A pauta era bombástica: pegar de vez o lobisomem!
Já em nosso escritório, Rodrigo me narrou que seu pai retornara por volta das cinco e meia da manhã, ferido no braço. Alegou para a esposa e para o filho que caíra de moto e cortara o braço. Rodrigo, todavia, desconfiou da versão dada pelo pai, pois não havia outras escoriações, arranhões, nada que comumente ocorre em quedas com motos e bicicletas. Nesse assunto, meu amigo era perito, na medida em que sempre capotava com sua bicicleta, tinha a tola mania de frear a roda da frente em alta velocidade. Sua vida era Rifocina e Mertiolate, e sua mãe era rígida, não assoprava no momento de ardência do ferimento. Era um tipo de educação que nunca compreendi, mas acho que funcionava bem, Rodrigo deixou de fazer maluquices com sua bike. Aquela Caloi freestyle aro 20 dele era fantástica. Eu me contentava com minha Monark marcha única, com garupa.
Nós não tínhamos certeza de que o pai de Rodrigo fosse o lobisomem, mas tudo levava a crer que sim. Informei ao Rodrigo que o lobisomem tinha agido novamente, fizera dois bois vítimas de um monstruoso ataque, na estrada do Tambaú, justamente a que seu pai tomou rumo na madrugada. Rodrigo ficou apreensivo, divagava enquanto saboreava uma das últimas amoras ainda fixadas nos galhos, disputava uma a uma com os imperturbáveis assanhaços. De chofre, teve um estalo mental:
— Daniel, no relatório você cita um processo de encantamento de cura da pessoa que vira lobisomem. Pode me relatar novamente? — pediu com voz ansiosa.
— Ah, sim… — comecei a responder com ar professoral. — Lá diz que se cortarmos o lobisomem com uma faca, ele retorna seu aspecto humano para sempre. Contudo, é preciso besuntar a faca a ser usada com cera derretida de vela usada em missa de noite de Natal.
— Como vamos conseguir essa cera derretida de vela de Natal. Só se roubarmos da Igreja! — falou em tom de desânimo, com as mãos para o céu.
— Não sei dizer, mas acho que roubar a vela da igreja deve ser um pecado imperdoável. Mas tenho uma ideia!
— Qual?
— Eu conheço o coroinha chefe, posso ver com ele se consegue a cera para nós. Mas ele vai querer algo em troca, eu o conheço bem.
E lá fui eu falar com o Tiago, chefe dos coroinhas. Ele era um garoto forte, alto, sua cara tinha uma constelação de espinhas. Era quieto, não tinha amigos. Eu o conhecia da época da creche, e de certa forma gostava muito dele, no entanto, tratava-se de um nerd, pouco saía para brincar, passava horas a fio jogando videogame e brincado de Ferrorama. Um dia ele me disse: “Adoro a solidão”. Naquela época, eu não conseguia compreender como ele conseguia viver solitariamente, salvo a sua participação na igreja. Hoje eu o entendo perfeitamente, pois no fundo todo mundo que gostamos um dia vai nos ferir.
Contei para ele que precisava da tal cera derretida de vela usada na missa da noite de Natal. Exigi que fosse a genuína, sob pena de colocar em risco a simpatia que minha mãe ia fazer para que eu sarasse da bronquite. Tive que mentir, não poderia falar uma vírgula sobre a Operação Lobo de Olhos Verdes, afinal, era sigilosa, e os bons policiais espiões e detetives nunca falam sobre suas ações, mesmo diante da mais terrível tortura. Assim era como eu imaginava, mas na prática um baita chute no saco faz você vomitar até o que não sabe.
O chefe dos coroinhas prometeu me ajudar, mas cobrou um preço caro para um adolescente. O danado queria em troca cinco revistas pornográficas. E eu achando que aquelas espinhas tinham a ver com chocolates… Maldito masturbador! Nós, adolescentes, realmente não merecemos o perdão, pensei comigo. Enfim, quebrei meu porquinho de moedas, Rodrigo quebrou o dele, e juntos somamos cinquenta cruzeiros. Compramos as revistinhas mais sacanas que havia na rodoviária de Araraquara. Quando as entreguei ao Tiago, vi na cara dele um sorriso descarado, cheio de malícia. Ele exigiu revistas novas e lacradas, “virgens”, no dizer dele. Sequer tivemos a oportunidade de bisbilhotar o conteúdo delas. Ele realmente era bem estranho. O que importava era a cera da vela derretida na missa de Natal. Agora precisávamos de uma faca ou um facão. Isso foi fácil, peguei uma do meu pai no quartinho dos fundos, onde costumeiramente se guardam toda espécie de coisas. Achei duas facas, era prudente cada um de nós ter a sua própria arma besuntada de cera abençoada.
E assim traçamos o nosso plano final, enfrentar o lobisomem na próxima sexta-feira, no cemitério. Sim, nós sabíamos que após a transformação, o ser bestial passa ao menos por um cemitério durante a sua travessura macabra pela madrugada. E em Gavião Peixoto só havia um cemitério, no Bairro Nova Paulicéia, distante três quilômetros de nossas casas, o que nos exigiria uma boa pedalada noturna. Mas faltava em nosso plano uma forma de chamar atenção do lobisomem para um determinado espaço dentro do cemitério, local em que nós o acertaríamos com nossas facas, fazendo-o sangrar. O seu sangue chamaria atenção do Diabo, conforme relatado no velho alfarrábio. O Canhestro iria lamber a ferida e libertar o homem amaldiçoado para sempre da transmutação maligna.
Lembrei-me de que na farmácia do Joãozinho, que ficava na Avenida Getúlio Vargas, logo atrás da igreja, havia uma boneca à venda que, se você tirasse a chupeta da boca, ela chorava como um recém-nascido. Seria uma excelente forma de atrair o lobisomem para um local específico, bastava acionar o choro da boneca com uma linha a ser puxada para retirar a chupeta. Lá se foram mais alguns cruzeiros. Seu Joãozinho era um bom homem, fez em três vezes para mim, incrivelmente nem precisei da assinatura dos meus pais. Antes de eu sair da farmácia, aquele sábio senhor me disse: “Você me parece sobrecarregado. Leve este incenso da sorte e da luz. Acenda em seu quarto. Vai te fazer bem”. Minha mãe dizia que o Joãozinho era sensitivo, e, a partir daquele momento, eu não tive dúvidas. O incenso exalava um cheiro almiscarado, me senti mais forte, é verdade. Eu deveria ter conversado mais com aquele homem, com certeza ele tinha histórias incríveis para contar.
Os dias pareciam não passar, mas enfim a quinta-feira chegou. Durante a tarde, eu e o Rodrigo besuntamos as facas com a cera abençoada de Natal, fizemos testes na boneca chorona, simulamos a retirada da chupeta com barbante e determinamos o ângulo correto para a perfeita manobra. A ideia era ferir o lobisomem pelas costas enquanto ele se iludia com a boneca. O golpe não poderia ser fatal, pois se tratava do lobisomem pai do Rodrigo.
Adolescente tem o dom de enganar os pais facilmente. Para os meus, eu disse que ia dormir na casa de Rodrigo. Já Rodrigo, disse que ia dormir na minha casa. Motivo: fazer trabalho de escola e depois montar um quebra-cabeça de mil e quinhentas peças. Não haveria aula na sexta-feira, o que facilitou o nosso engodo. Onze horas da noite nos encontramos na praça, fixamos os faroletes no guidão da minha bicicleta com fita isolante, Rodrigo saltou na garupa e partimos para o cemitério de Nova Paulicéia. Confesso que eu tremia de medo, ainda mais quando chegamos à altura da descida do Bergoci. À noite, aquilo parecia uma garganta do inferno. Curiangos e morcegos atravessavam a escuridão, aumentando o aspecto fantasmagórico do local. Ao passar por aquele trecho, eu me senti aliviado. Rodrigo suava frio, muito provavelmente pensando em seu pai. Eu queria desistir de tudo aquilo, por pouco não o fiz, mas uma voz me dizia no fundo da minha alma: “Se estiver atravessando o inferno… não pare”. Não sei explicar de onde vinha aquela voz, mas era algo a se considerar, então mantive-me firme, o momento exigia rigidez de propósito.
Rodrigo, um dia antes, foi ao cemitério estudar o terreno. Escolheu nosso esconderijo entre alguns ipês. A boneca ficaria entre dois túmulos e nós escondidos atrás das árvores. Entre ele e eu havia uma distância de quinze metros. Fui até os dois túmulos e fiz uma espécie de bercinho com pedras e coloquei a boneca no centro. Amarrei o barbante na chupeta, acionei a boneca e estiquei o barbante até a árvore em que Rodrigo ficaria escondido. Entre nós e a boneca, distava cerca de dez metros. Limpamos o trecho para podermos correr em direção ao lobisomem sem fazer estrondo com as pisadas.
Estava tudo armado, restava aparecer o lobisomem.
Quando deu meia-noite, ouvimos o som das badaladas do sino da Igreja de Gavião Peixoto. Rodrigo olhou para mim e acenou com a cabeça que estava tudo bem. Fiz o mesmo, mas na verdade eu estava amedrontado, minhas tripas se retorciam. Ficamos ali por mais uma hora, sem qualquer movimentação diferente, apenas algumas cruzes de sepulcro balançando com o sopro do vento. Do outro lado, um fogo fátuo explodiu e pudemos ver uma bola de fogo. Se eu tivesse faltado à aula de Ciências, teria me cagado de medo, mas eu sabia que aquela explosão era gás metano se liberando da terra, do ventre de algum cadáver putrefato.
De repente, houve um estrondo e o portão se abriu, era o lobisomem. Seu uivo foi ensurdecedor, parecia que todas as almas dos enterrados se levantaram, comecei a ver fumaças tomando corpo de humanos, espectros; talvez fosse o medo. Rodrigo fez um gesto de manter silêncio. O lobisomem começou a correr por entre os túmulos. Alcançou algum bicho, era um tatu gigante. Levantou-o com a boca e o mordeu com raiva. O pobre bicho grunhiu até se esvair todo. Rodrigo puxou o barbante e a boneca começou a choramingar como um bebê. E então o lobisomem se virou para o nosso lado. A boneca, aos berros. As orelhas do lobisomem se contorciam, da sua boca saía sangue do tatu, seus olhos pareciam ter fogo. Ele se aproximava na direção da boneca, com sua boca nojenta aberta, furioso. Ficou de costas para nós, olhava para a boneca e uivava como se estivesse agradecendo ao Diabo pela oferta.
Era o momento propício para o ferirmos com a faca, no entanto, em meu desespero, com medo, gritei:
— Não, Rodrigo!
O lobisomem se voltou para mim e me avistou, ergueu seus braços, suas garras se mostravam afiadas, e em dois saltos me alcançou, jogando-me ao chão, com seus dois joelhos em meu peito, sufocando-me com a maestria de um predador destemido. De sua boca, sangue escorria em meu rosto, assim como uma saliva verde fétida. Uma espuma suja saía de suas narinas. Era um monstro horrível, mas eu via que algum humano estava ali dentro. Humanos podem ser monstros, eu pensava, e sequer precisam ser lobisomens. Ele abriu a boca, era o meu fim. Fechei meus olhos e pedi perdão para Deus e meus pais. De repente, ouvi Rodrigo:
— Pai, pai, não, pai! Sou eu, Rodrigo!
O lobisomem saiu de cima de mim, estufou o peito, abriu a sua boca maligna e se voltou para Rodrigo. Limpei o meu rosto daquela gosma fedorenta. Rodrigo continuava chamando o lobisomem de pai. Mas com monstros não há conversa, muito menos sentimentalismo. O lobisomem partiu para cima de Rodrigo. Agi rapidamente. Saquei a faca da minha cintura e dei um golpe fatal em sua cabeça. Acertei apenas a orelha esquerda do monstro diabólico, decepando-a. O lobisomem se voltou novamente contra mim. Eu estava realmente azarado naquela noite. O lobisomem uivou com a força de todos os infernos, sua boca salivava exageradamente, seus olhos esbugalhados e as pálpebras cheias de sangue. Era o meu fim. No entanto, escutei um tiro de arma de fogo, a bala passou por cima da minha cabeça e varou o ombro do lobisomem. Do buraco, saía fumaça, parecia uma reação química de ácido, era bala de prata. O lobisomem gritou ainda mais alto, mas, desta vez, de dor. Seus pés estavam recuperando o aspecto humano, saltou o muro e sumiu pelas matas, uivando loucamente, de ódio, de dor. Com certeza, antes de raiar o sol, o Diabo lamberia suas feridas. Atrás de mim, surgiu o pai de Rodrigo, com um rifle nas mãos e a estrela de Davi estampada no peito, seus olhos verdes de lobo brilhavam na madrugada terrível.
— Vamos embora daqui, seus pestinhas! — ele nos disse, aliviado.
Depois daquela noite, o lobisomem nunca mais apareceu e tudo foi devidamente esclarecido. O pai de Rodrigo era um caçador de lobisomens e vinha cumprindo a sua missão, herdada de geração para geração em sua família. Ele nos contou tudo e disse ter sentido muito orgulho de nossa coragem. Rodrigo com certeza seria um dos mais respeitáveis caçadores de bestas-feras, era algo genético.
Depois de algumas semanas, meu amigo se despediu de mim, estava de mudança, como de costume. Havia outras cidades sofrendo ataques de lobisomem e seu pai devia cumprir o seu dever. Em um futuro próximo, Rodrigo também iniciaria na arte milenar de combate ao mal. Segundo seu pai nos contou, as portas do inferno nunca se fecham. Não importa o quanto o homem evolua materialmente, a maldade é algo inerente ao ser humano. Eu concordei com aquela fatídica sentença. Toda despedida é triste, mas cada um de nós tem uma estrada a ser trilhada. Ganhei do caçador de lobisomem um amuleto sagrado da estrela de Davi e meia dúzia de balas de prata. Agradeci pelo gesto de amizade. De vez em quando eu e o Rodrigo nos encontramos, mas ele anda ocupado estudando os livros sagrados, cabalísticos e herméticos das antigas civilizações. Quer encontrar a chave para finalmente fechar as portas do inferno. Sinceramente, sempre acreditei que a Terra é o inferno de outra grande civilização. Acho que li isso em algum lugar. O mal está em toda parte, e em algum momento a vida nos exigirá, acima de tudo, posição e coragem.
Depois de um tempo, cerca de dois anos após o episódio do cemitério, um senhor apareceu em frente à minha casa. Usava um boné desses promocionais distribuídos por supermercados, trajando uma roupa simples. Estava vendendo panelas. Eu lhe disse que a minha mãe não estava. De repente, o senhor tirou o boné e pude ver que ele não tinha a orelha esquerda. Encarou-me e disse:
— Muito obrigado. Adeus. — E foi embora, me deixando de cabelos em pé!
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