Teologia na Roda de Truco - Recicla Leitores
Do como foi introduzido o assunto por Luzito, o professor primário, em paráfrase
E é sempre bom lembrar que: o povo já estava caindo de bêbado. Festa de casamento, os excessos em permitida data. O vinho acabara, a batucada ia se encerrar, e sobraria novamente a tristeza, de um povo sujeitado, em romanas rudes formas. Mas eis que o rapaz de Nazareno, o filho de Maria e José, entrou em cena.
Num processo, quiçá, alquímico, sem os porquês, fez surgir vinho em abundância. Luz em suas mãos, em agitadas circulações em torno de si, sobre jarras priscas, cheias de água. Jesus, o nome dele, mexia para cá, mexia para lá, braços magros, mãos frágeis, cabeleira em floresta virgem, nos ventos, e o vinho surgiu, tomando lugar da água na vasilha. Ninguém perguntou coisas de ‘como assim’. Prova maior era beber o vinho, e deixar a casa cair. Pau torou!
Do milagre possível e do milagre quase impossível
Ressuscitar um morto exige técnica menos complexa para Deus. No caso de um morto, basta o dar-lhe um assopro pelas ventas e devolver a alma ao presunto. O procedimento, simples até, consta em Gênesis, em linguagem direta, de Manual, em 2:7. “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.”
Mas e ressuscitar uma festa, no seu momento de extrema-unção, que é quando o álcool acaba? Fazer a água se transformar em vinho sem o demorado processo de fermentação, desde lá aprendido pelos sumérios? Veja só a espécie de grandiosidade que é transformar água em vinho. Eis um ação paranormal de maior grau de complexidade. Tanto em fazê-lo, como em compreendê-lo!
Ninguém espera convictamente por milagreiros. Menos ainda por ver Deus em pessoa. Isso só Moisés, mas não face a face. Talvez Maomé, mas não soube explicar o que teria visto da borda da caverna no Monte Mira. Depois se soube que era o anjo Gabriel trazendo-lhe inspiração para fundar a nova religião que surgiria. Jó, o paciente, diz que viu, conquanto não só perdera a Fazenda, a família e semoventes. Com tanta desgraça, um pouco da lucidez também se esvai. Daí porque é mais verossímil a ideia do Unigênito, espelho de Deus, do criador. Vê-se. Fez-se ver aos homens e às mulheres. A estas, muito mais.
Conhecendo essas exceções e raridades, é de despencar o queixo quando surge um novo milagreiro e este homem inesperado começa a profissão em proeza: iniciando pelo mais dos impossíveis dos impossíveis processos? Esse completo absurdo é o barulhento indício de sua descendência direta de Deus. Unigênito. Cá ficou assim nas letras dos evangelhos. Mas volvemos a comparar os milagres.
Sobre o sopro da alma, que tanto gera vida como a recompõe no mundo, consta manual de procedimento no texto bíblico, consoante dito alhures. Por outro lado, pode ler a Bíblia de ponta a ponta, capa a capa, de trás para frente, e não se achará manual para transmutar água em vinho, no modo miojo, isto é, no instantâneo, na ausência mesmo do tempo e, em essência, da falta da fruta uva! Nem uva tinha, só água pura, em jarros grandes. Inobstante, o Nazareno fê-lo.
Unigênito, portanto. Não restava dúvida. Só uma, no exato dos acontecimentos. Por que Deus faria mais vinho para uma festa por se encerrar, com gente se acotovelando pelas paredes, mesas e ombros? Festa tida por já encerrada. Quem frequenta iguais, imagina o cenário com perfeição cinematográfica.
Do debate que tudo aquilo gerou na roda dos amigos. Leigos e um eclesial.
O pastor Tirso, tossindo calculadamente para limpar a goela, glosou do texto Bíblico. Desavergonhou-se sobre a passagem da Bodas de Caná, o relato do primeiro milagre de Jesus nos evangelhos, a transmutação da água em vinho. O assunto da pauta.
Tirso, no ensejo hermenêutico teológico, fez tentativa de limpeza moral nas palavras do apóstolo João. Assim argumentou o pastor, na roda de circundantes gentes, todas amigas de si e entre si: “A segunda rodada de vinho, o do milagre, era sem álcool. Jesus não tomava vinho com álcool. Não admitia.”
Cogitou consigo mesmo que bem argumentara, porém lhe faltou a firmeza de um alicerce apostólico; não foi capaz de confirmar o que dissera com base no texto bíblico, nem na versão inglesa do Rei Jaime. Ignorava a existência de tais nuances, inclusive. Aquela lei seca do nazareno não consta em Mateus, Marcos, Lucas e João. Tirso, inovador, fez vista grossa, não apontou capítulos e versículos, vagueou abusadamente em sua ilusória autoridade.
Ali não era o púlpito de Tirso, e na sua confusão espacial e geográfica, perdeu-se na escolha da persona para o ensejo. Em roda de amigos não se prega, preza-se. Mesa de truco não é o lugar de se exigir tapadas lealdades canônicas ou futebolísticas. Nessas situações até conversa séria perde seus modos de elegância. Não é para se levar tudo a oito ou oitenta, como ele insistia.
O resultado de jogar conversa fora é jogar conversa fora. Tirso queria jogar goela adentro. Pensara para si e por si, no se desejar crescer, declinando em vaidade. Caiu em erro teológico fatal: afastar a divindade do homem comum. Exagerou na fricção das cordas. Muito aperto não traz segurança, corta. Se nas coisas da fé há uma riqueza simbólica, não mexa no vinho e nem no peixe. Conotação de tanta poesia, alegria e comunhão. Tirso caíra no descrédito, e nenhum dos amigos o levou, ironicamente, a sério. Silentes comentários, só troca de olhares, amargos, feridos. Tudo passaria sem barulho, mas.
Neném, motorista de ambulância e enófilo de final de semana, revestiu os is de pingo, no discernimento exato: “A Bíblia fala em vinho e não em suco de uva.” Por sua ácida modéstia conhecida, o motorista, homem atarracado e bonito, ganhou aplausos coletivos, para a infelicidade do agora ressabiado pastor, que se via sem saída. No calvário. Por culpa dele só, dele mesmo. Retraiu a cara, como se soubesse o que viria. Só ajudou a se confirmar o sucedido.
O argumento sarcástico do Neném, mais a cara de susto do Tirso, foram motivos para o círculo de amigos, por breve instante, desfazer-se em estrebuchantes gargalhadas pecaminosas e comunistas; só esses é quem sorri alegre assim de autoridades eclesiais, mesmo em sendo tão chegados. Há os limites. Há os Robespierres.
Para evitar o desbarrancamento total, o Pastor Tirso se deu por meio vencido, confessando, tipo um gesto de reaproximação dos cordeiros, seus gerais amigos, o que, ao fim, diga-se por justo, tinha o maior valor para ele, ainda que com suas gastas excentricidades: “Eu bem que aprecio um vinho doce, mas vinho mesmo. Vinho humano. Não do milagreiro, igual aquele tipo suco!” Tentou o ardil retórico, pouco tenaz de tão cheia malícia, da puída estratégia do bater e assoprar. Não se deu inteiramente por superado. É nessas esquisitices egocêntricas que vicejam as guerras santas. Neném dando aula? Não, Tirso, em si, não admitia.
Para o seu desagrado, viu no rosto de cada qual da turma a não crença nele. Caiu em desuso. Então Tirso sorriu de si mesmo, aberto ao público. Todos davam como a peleja superada, pois estava desgostando geral. O pastor, porém, atacou de sobressalto em reticências, novamente. Ajeitou as calças enquanto andava em circulares pela mesa, conferiu a dobra da gola da sua camisa branca, esticou a gravata verde abacate, cuja ponta se acomodava na altura do seu umbigo, e verbalizou: “Eu acho que há pecados. E há pecados!”
Àquela altura a turma já havia dispersado os pensamentos, alheios aos desassossegos do Tirso. Encontravam-se absorvidos nas táticas do Truco, no baralho, entre sinais de piscadas em código específicos e gritos de 6, 9, 12! Tirso, portanto, ficara em desarmonia, impertinente de assunto e por não beber. Manteve-se no estimulante refrigerante de guaraná. Aquilo de pecados persistia só na cabeça dele. Queria era a conversão geral, não para o mundo da fé, mas tão-somente que todos concordassem com o seu vinho sem álcool de Jesus. Abusava da amizade.
Tião dos Porcos, homem rude de tão bonzinho, amigo de infância do pastor, fechou a conversa em aberto e à deriva. Jogou as cartas na távola — um carretelzão de madeira improvisado de mesa, pinho cheiroso —, esperou o silêncio da turma, soltou berro: “Vai pra @#*”$, Tirsinho Canabrava!“
Nova gargalhada comunista, agora aderida até pelo Pastor Tirso, no rubor receoso de alguém lhe perguntar, comentar sobre aquele seu antigo apelido ‘Tirsinho Canabrava’, que ressurgiu das profundezas do Tião. Assunto prejudicial, melhor evitar, pensou Tirso enquanto observava as três caixas de garrafas de cerveja esvaziadas, juntadas por baixo da mesa. Ninguém queria mais tais divagações, tanto que logo acalmaram o Tião dos Porcos, que correu abraçar o Tirso, em afagos de tudo-bem-me-desculpe.
O milagre revelador do Pastor Tirso
Pastor Tirso viu naquilo o milagre que ninguém viu. Calou-se em sorrisos, cegando a todos do entrevisto, por dádiva divina. Milagre dos maiores: esse sim, raro de operar, fugir das maldosas línguas, que a tudo remexe, relembra, cavouca. Milagre foi dos grandes, pois na sequência os amigos prometeram irem ao culto do domingo, na sua Igreja, no final da Rua da Esperança, principalmente o carinhoso Tião do Porcos.
Tirso, convicto de vencedor, mas agora não havia vaidade nele, era leveza o que sentia, despediu-se e se apartou dos amigos, feliz demais, por inteiro, completo. Seus olhos, avermelhados, em lágrimas. Agora ele era só certeza.
Relatado seja, esclarecendo melhor: Tirso, Pastor Tirso, Tirsinho Canabrava, mesmo com tantos eus e poréns, era um bom homem.