A Física Horlística de Dante - Recicla Leitores
A inesperada morte do nosso pai, assassinado brutalmente, produziu feridas no coração de todos da família, e foi necessário um ano para que deixássemos de chorar diariamente. Quase sempre, o tempo ameniza o sentimento de perda de um ente querido, e assim se sucedeu comigo, com minha mãe e com os meus irmãos mais velhos, Márcio e Israel. Entretanto, Dante, o meu estranho irmão caçula, precisou de um percurso maior para, digamos, fazer do sofrimento uma escalada do amadurecimento. É sobre ele, o jovem peculiar Dante, o motivo das linhas seguintes.
Se não bastasse o efeito mórbido que a ausência paterna, de causa hedionda, provocara no caçula da família, Dante teve seu quadro melancólico agravado quando, dois anos depois de perder o pai, o seu cachorro, um robusto pastor belga de pelos negros, o qual chamávamos pelo apelido “Pantera ”, faleceu vítima de uma grave infecção de causa desconhecida.
Meu irmão Dante, na época tinha dezesseis anos, era um adolescente inteligente, tímido e, por conta disso, comportava-se com relativa fobia social. A morte do pai seguida de seu melhor amigo o levou ao paroxismo do isolamento. Fechou-se profundamente em seu quarto, abandonando até a escola, a despeito da família toda implorar para que ele reagisse à angústia que o definhava.
Minha mãe buscou ajuda psiquiátrica e psicológica, mas Dante se mostrava insuscetível a qualquer tratamento. Com o tempo, a minha mãe, dando-se por temporariamente vencida, aceitou o jeito singular do seu filho preferido, de modo que deixamos ele viver a sua vida reclusa, no quadrado de seu quarto, onde passava horas lendo seus livros, cuja quantidade aumentava ano a ano.
Dante saia poucas vezes do seu quarto, geralmente para ir ao banheiro ou pedir algo, favores, para algum de nós da família. Entretanto, o nosso irmão caçula fazia questão de quase toda tarde tomar café na cozinha com a mãe. Ali ele relatava brevemente suas especulações filosóficas e científicas, e suas diárias divagações adquiriam maior complexidade com o passar do tempo, até que, em um período que não sei definir, as suas palavras se tornaram majoritariamente incognoscíveis para nós.
Nesses momentos de café da tarde, pontualmente às cinco horas, Dante nos abraçava, primeiro a mamãe e depois os irmãos. Tomava o café aromático, e seu triste coração naquele instante se enchia de rara alegria. Nesses momentos vespertinos, ele aproveitava a ocasião e entregava-nos uma lista contendo dois ou três nomes de livros que ele gostaria de ter.
Minha mãe, cujo amor maternal maior pertencia ao filho maluco, comprava sem titubear. E lá ia eu ao correio buscar aqueles livros grossos, de capa dura, ostentando títulos com referência às ciências gerais e ocultas, tais como a Alquimia, Cabala, astrofísica, biologia, além de filosofia ocidental e oriental, inclusive a excêntrica teosofia.
Dois anos se passaram, e agora meus outros dois irmãos já não digeriam a situação do Dante como aceitável. Eles diziam que o caçula se tornara um peso para a família, não trabalhava, não estudava, mas aproveitava do bom e do melhor às custas do suor dos outros. Eu, com minha mãe, refutávamos aquela injusta crítica ao caçula, demonstrando a sua aparente fragilidade psicológica, entretanto, os irmãos detratores não se sensibilizavam com a personalidade singular do Dante. Este, tinha consciência das insinuações dos irmãos, mas nunca questionou Márcio e Israel. O que notei, foi um gradual aumento de seu isolamento no quarto. O cômodo que ele intitulou de seu Laboratório Espectro-Multidimensional.
Verdade seja dita, Márcio e Israel teciam suas críticas sobre Dante se dirigindo unicamente à nossa mãe, porém, jamais o fizeram na presença ou diretamente ao irmão caçula. Não por que eles tinham medo de um eventual confronto corporal com ele. Longe disso, pois a estrutura física do Dante era pequena. O que os impedia de confrontar o irmão mais novo, encarando-o olho a olho, era a sua descomunal estatura intelectual e espiritual, adquirida naqueles anos de constantes estudos e leituras na solidão de seu quarto. Difícil não se comover diante de um rosto melancólico, porém, irradiante de sabe-se lá que energia.
Posso testemunhar que, sob juramento, na presença de Dante os nossos corações amoleciam, víamos em seu rosto pálido aquela pureza há tanto tempo extinta na humanidade. No fundo, todos tínhamos um profundo orgulho daquele jovem esquisito, que a cada dia se mostrava mais brilhante, cuja gradual evolução nos dava a esperança de sua futura emancipação psicológica. Por outro lado, simultaneamente ao nosso crescente temor reverencial por Dante, surgiu o medo das coisas absurdas e esquizofrênicas que Dante passara a falar, bem como do seu modo de agir em consonância com aquelas esquisitas verbalizações.
Na rotina do lar, cujas etapas são inflexíveis mesmo ao fluir do tempo, numa daquelas tardes de família reunida na cozinha, minha mãe acabara de coar o café, e aquele inconfundível aroma exalou deliciosamente por toda a casa, impregnando os seus oito cômodos, até mesmo o impenetrável quarto do Dante, o qual fora arrebatado pelo efeito glandular de salivação.
Então o jovem ermitão avançou pela porta da cozinha, apresentando seus trejeitos de desconfiança além do comumente visto. Por coincidência, naquela tarde todos os irmãos estavam em casa, reunidos. Márcio e Israel falavam exatamente do Dante para a minha mãe quando ele apareceu. Os dois ficaram constrangidos ao verem entrando o alvo de suas críticas, e logo mudaram de assunto.
Dante caminhou até a pia e, de costas para todos, pegou um copo e o encheu de água potável, do filtro de barro. Bebeu lentamente e, ainda se mantendo de costas e, passando a examinar a paisagem pela janela, meneou a cabeça em reprovação a algo, soltou uma risada, virou-se para nós, e alfinetou: “Continuem, eu os ouvia do quarto.” Márcio e Israel se entreolharam, surpresos com a reação inédita do caçula. Ousaram partir para o confronto verbal com o pálido e radiante adolescente.
Israel, o mais sobressaltado dos dois, esforçando-se para manter alto o seu semblante, foi quem primeiro inquiriu Dante. “Temos uma espécie de mago aqui, capaz de ouvir o que as pessoas falam mesmo estando fechado num quarto fedido e distante…Me poupe com seus joguinhos malucos. Pois bem, o que a gente falava? Me diga… ”
Dante terminou de beber a sua água, repousou o copo na pia, encarou os irmãos irradiando um sentimento forte de seu verdadeiro amor por eles. Seu olhar fixo produziu nos dois o efeito extraordinário da comoção. Dante lançou sua vista para a mãe, viu-a abalada, foi até ela, enxugou as lágrimas no rosto dela, e, abraçando-a, disse: “Calma, mãe, eles não vão fazer aquilo comigo. Mãe, sente-se aqui. Eu mesmo me sirvo. O cheiro do café está sedutor como sempre.”
O carinhoso filho puxou gentilmente a cadeira para que a mãe se acomodasse. As cinco xícaras sobre a mesa estavam vazias, e Dante serviu o café para todos. Márcio e Israel não sabiam onde enfiar a cara, e eu vi lágrimas tímidas brotando no canto de suas órbitas. Israel tremia o queixo, seu aspecto ficara perturbador. Dante, após nos servir o café, sentou-se na cadeira, ficando de frente para seus irmãos detratores. Eu me encontrava ao lado da mamãe e observei o desenrolar daquele intrigante episódio familiar. Márcio e Israel se mantiveram cabisbaixos, tentando ocultar o choro murmurante. Dante estendeu o braço direito na direção deles, alisou as suas mãos, e, com a voz serena, pediu-lhes: “Olhem para mim, vamos. Olhem aqui.”
Os dois, com muito custo e após um sofrido choro, encararam a fisionomia brilhante do caçula. Este, não chorou, contudo, era nítida a sua forte emoção. Dante então voltou a falar.
“Você, Israel, que tanto estimo, só tenho a agradecer pelo pão que me proporciona diariamente, com seu labor, com sua profissão. Obrigado. E você também, meu amado irmão Márcio, que me ensinou a fabricar as melhores pipas que já desbravaram os céus de nossa cidade. Também agradeço pelo conforto que me proporciona com seu suor.”
Dante pausou o seu discurso, sugerindo mais uma rodada degustativa de café. Sua atitude restabelecera a tranquilidade, e entre goles da bebida quente, exaltávamos a excelência da mãe no preparo do café. Márcio e Israel, arrependidos, aproveitaram o momento favorável, e pediram desculpas ao irmão caçula. Justificaram que desejariam ardentemente vê-lo ativo, convivendo em sociedade, namorando, tomando umas com a turma da sua idade. Dante, com uma profunda atenção, ouviu as palavras verdadeiras dos irmãos, chorou, e muito. Em seguida, Dante abriu o seu coração machucado como nunca fizera antes. Voltou a falar, e seu discurso agora ganhou contornos poéticos.
“Vocês, mais do que o pão que me alimenta, ou este café que bebo, me dão a vida, ainda que eu a leve de uma forma bem diferente das suas. Sem vocês, sem a mamãe, sem o Douglas, eu teria abandonado o plano fenomenológico há muito tempo.. .”
Dante, emocionado e parecendo ter o corpo envolto por uma espécie de leve aura energética, levantou-se, aproximou-se dos irmãos a quem dirigia as suas palavras, abraçou-os, depois, puxou-me, e também a mamãe. O afetuoso abraço coletivo fez-nos experimentar o revigorante poder do amor, o mais poderoso amor, de mãe e filho, de irmãos. Juro que me arrepiei, aquele episódio nos encheu de uma sensação de imenso pertencimento.
O caçula voltou a se sentar na cadeira, seguido por nós, até que um a um se acomodassem ao redor da mesa. Dante, com seu incrível poder de proporcionar nas pessoas as sensações mais indescritíveis, fez com que todos déssemos as mãos, e assim nosso gesto formou um círculo humano de braços estendidos. Mantendo nossas
mãos entrelaçadas, Dante retornou ao seu pronunciamento, que interrompera antes do abraço coletivo. Fiquei feliz ao saber que iria ouvir mais um pouco da sua rica retórica, constituída de metáforas e pensamentos extasiantes.
“Aquele abraço familiar que demos e agora esse círculo formado pela junção inquebrável de nossas mãos…isso tudo são simbolismos para clarear e fortalecer a compreensão de vocês para o que vou lhes revelar”.
A gente já esperava fortes emoções.
“Como lhes dissera, se não fossem vocês eu teria levado o meu desejo de suicídio ao nível da efetiva realização. Mas depois de muito estudar, depois de absorver grande parte do que a humanidade descobriu sobre as especulações existenciais, e a narrativa ilusória do nosso “eu”… Ah… Meus queridos, eu compreendi… Sim, agora eu sei como tudo é ‘não ser’. E só pude ver o sentido quando a minha angústia me colocou no milímetro final do abismo. Lá, espreitando o buraco de infinita profundidade, eu pude ver então…Vou lhes contar como cheguei na beira do abismo, e como não me joguei, como abandonei a indesejada pulsão de morte. Escutem. Era o dia 8 de agosto do ano passado. Após o almoço, nenhum de vocês estava em casa. Decidido a dar fim na minha vida, por incrível que lhes pareça, saí de casa, e fui à loja de ferramentas que fica de frente para a praça central. O Roberto, o dono do estabelecimento, quando viu que era eu quem estava diante dele, quase desmaiou. Correu me abraçar. Juro que, inesperadamente, batendo um papo comigo durante dez minutos, ele ficou emocionado, chorou, e citou o papai. Por fim, comprei algumas ripas, pregos e dez metros de corda. Na verdade, as ripas eram apenas um disfarce, o que me interessava era somente a corda… vocês devem imaginar o motivo. Por sorte, quando retornei para casa a encontrei vazia como a deixara. Vocês nada viram ou souberam da minha furtiva escapada. Então, eu preparei o cenário do meu suicídio, afixando a corda no teto, já com o laço de enforcamento pronto. Ajustei a altura ideal da corda, na distância perfeita para a execução de uma pessoa de um metro e setenta. Tudo preparado no quarto, busquei uma cadeira aqui na cozinha. Exatamente essa que o Israel está. Antes de levar a cadeira ao quarto, decidi tomar meu último gole de água. Fui na pia, enchi o copo, a janela estava aberta como agora e, repentinamente, começou a chover. Já que veio a chuva, pensei, por que não tomar o último banho de chuva, igual aqueles que a gente fazia e depois o papai nos dava uma sova. Hahaha… Lembram como era divertido brincar na chuva? Bom. E lá fui eu me banhar no forte temporal. Molhei-me todo em segundos. Tirei a camisa, depois a bermuda. Sim, não riam de mim. Fiquei só de cueca, bem ali no quintal. Foi Hilário, mas libertador. Mil lembranças se projetavam na minha
cabeça. Sobre tudo, em especial do papai e do meu amigo Pantera , o cachorro. Eu pulava feliz na chuva, despedia-me da vida com empolgada determinação. Entretanto, arrepio-me ao lembrar os desdobramentos daquela minha infantil atitude de dançar na chuva. Prestem atenção: eu ouvi nitidamente o latido do meu falecido cachorro, do Pantera . Sim, o latido era dele, eu ouvi aquele seu peculiar ganido por quase quinze anos, de modo que não me foi nada dificultoso reconhecer aquele uivo. O som do latido vinha da direção da antiga garagem dos fundos. Lancei meu olhar perscrutador para aquela direção. O cão, o qual eu não enxergava, continuava ladrando, e sua ruidosa persistência parecia querer me prender a atenção para algo na garagem. Chamei o cachorro como eu fazia antes dele morrer. Sim, foi muito estranho tudo aquilo, mas… É verdade que há tempos eu estudo os possíveis fenômenos sobrenaturais, a existência da alma, do espírito, da metafísica, contudo, entre as conjecturas que eu lia diariamente sobre esses assuntos especulativos e o testemunho da real experiência diante de um fenômeno fantástico, o primeiro efeito, sentido mesmo por alguém que conhece a fundo os mistérios, é o espanto, o atordoamento. Pois bem, eu chamava o cachorro como se fosse possível que ele estivesse novamente em casa. “Pantera , é você? Vem aqui, meu amigão, vem!” Eu não o via, mas ele ainda latia da garagem. Então eu reparei nas gotas de chuva que, escorrendo do telhado, caiam numa poça d’água. Sim, o cão queria que eu vislumbra-se esse aparente pequeno e inútil movimento liquido: gotas da chuva caindo numa poça.”
Dante se agitou, iniciou um andar de lá para cá pela cozinha, até que pousou a mão esquerda no ombro da mamãe e reiniciou o seu relato, para a satisfação de seus ouvintes.
“Ah, minha mãe, meus irmãos! conseguem ver o nobre símbolo na cena proporcionada pela chuva? Juro, juro! Joguei-me ao chão, ajoelhei-me, deslumbrado com a verdade transparente diante de mim. Entre o telhado velho e a poça d’água, a distância pela qual a gota se projetava ao se lançar da borda da telha, pude contemplar o universo. O Pantera , em estado não-físico, não-vibracional, não-energético, e sim inominável, de características incognoscíveis para a atual ciência, assim como tantos outros mistérios do planeta e do universo, correu até a mim. Enquanto o cachorro se aproximava, por onde ele passou, eu vi as gotas da chuva sofrerem alteração involuntária de trajetória, que ocorria por conta da estrutura espectral do Pantera . Já perto de mim, senti em meu rosto uma sensação parecida como uma lambida. O danado me lambera. Eu tentei abraçá-lo, contudo, meus braços não sentiram qualquer contato físico. Abracei o nada, entretanto, meu cão estava ali comigo, e eu já não sabia mais discernir o nada do ser. Minutos depois, o cão espectral me deixou sozinho. Retomei a observação das gotas se lançando na poça. Vocês já pegaram o significado? Tudo bem…..vou logo esclarecer.”
Dante deu uma merecida pausa no seu relato. Recuperava o fôlego. A gente o ouvia, todos nós, encantados com a sua incrível narrativa. Mas também preocupados. Eu vi nos rostos dos irmãos e no da mamãe o receio de toda aquela espetacular história ser fruto da possível loucura do irmão caçula. Aquela história, belíssima, é verdade, arrepiava qualquer um.
Dante reencheu nossas xícaras de café. Bebemos e comemos rosquinhas doces. A ansiedade por vê-lo continuar a sua história quase me deixou louco. E ele então reiniciou a conversa maluca.
“Como eu dizia, Pantera se foi, após me lamber a cara. Então passei a vislumbrar a cena da chuva. Gostas se lançando na poça. Mãe, me responda, se souber. Como é possível fazer com que uma gota de água não desapareça? Vai mãe, tente. Esforce-se, você consegue. Parta da cena da chuva no telhado da garagem. Vai, mãe!”
A minha mãe ficou envergonhada. Sua forte emoção lhe prejudicou o raciocínio. “Não sei, meu filho, não se responder. Diga você. “ Dante se dirigiu a mim. “Vai, Douglas, sabichão, me responda! “ Eu sorri, todos sorriram, e então arrisquei. “Bom, se você falou pra mãe se atentar a gota que cai na chuva…. Hummmm… Desconfio que para a gota não desaparecer, não sumir, basta lançá-la na poça. Ela vai compor o todo da água e sobreviverá… “
Dante soltou aplausos para o meu raciocínio. “Isso, Douglas. Isso! Eu ia me matar por que? Porque eu ilusoriamente me via como uma gota sozinha, sujeita ao absurdo existencial, e ignorando a poça, o todo! Quando a pouco eu os abracei, quando nos demos as mãos e juntos compomos uma circunferência, a mais perfeita e resiliente forma geométrica, eu era como aquela gota d’água se lançando no poça, e a poça escorre e segue até o ponto mais baixo e cai no rio, que cai no oceano, que some e desaparece, e volta a surgir, perpassando por diversos estados possíveis de existência fenomenológica. Resumindo, invadiu-me a esplêndida experiência da Unidade, do pertencimento. Eu que lia Hermes Trimegistus constantemente em meu quarto… Eu que conhecia suas sete leis universais… A da correspondência que afirma “O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora”. Não fui até então capaz de apreender aquelas verdades descobertas há milênios… E por que não conseguia ver mesmo sabendo sobre essas divagações? Porque tais considerações de alta gravidade mental exigem o experimentar, o se lançar como a gota.”
Dante encerrou a sua história, deixando-nos atônitos pela narrativa mágica com que nos brindara. Meu coração doeu quando refleti sobre ele ter quase se suicidado. Eu fiquei muito impressionado com o desabafo dele. Não é qualquer um que se expõe tão intimamente. Agradeci a Deus por ter iluminado o meu irmão na hora mais sombria da sua vida. Novamente, abraçou um a um dos seus irmãos, informou que estava feliz em comungar uma conversa franca com mamãe e seus irmãos. E antes de se ocultar no seu misterioso quarto, o famigerado laboratório espectro-multidimensional, pediu um favor para a mamãe.
“Mãe, lembra aqueles ossos de paleta de boi que você pegava com o açougueiro para dar ao Pantera ?” Sua pergunta nos deixou apreensivos. Ocorreram ligeiras trocas de olhares, até que mamãe respondeu.
“Sim, meu querido. Lógico que me lembro. A parte traseira do boi. Uns ossos grandes. O cachorro adorava. Por que me pergunta sobre isso agora, filho?
Dante, que percebera a desconfiança gerada em nossos pensamentos, esclareceu com uma firmeza irrepreensível.
“Acreditem em mim ou não, o meu amigo Pantera , cujo estado dimensional é imperceptível para vocês, ao menos por enquanto, está nesse momento aqui em meu lado. E vai me acompanhar até o meu quarto. Ele vem me visitar dia sim ou dia não. Mãe, hoje é segunda, pega um osso daquele na quarta. Umas duas da tarde. Até mais.”
O estranho caçula já estava saindo da cozinha quando voltou-se para a gente e, olhando-nos com seus olhos vibrantes e iluminados, com um aspecto de humano santificado, quase a dar a entender nem ser um terráqueo como a gente, disse-nos: “Algo me diz que um dia tudo o que vocês fazem por mim… retribuirei numa proporção imensurável. Amo vocês. Tchau.”
Tão logo ele se fechara em seu quarto, eu, minha mãe, Márcio e Israel travamos uma conversa sobre a certa demência, a esquizofrenia do Dante. Aquela história do cachorro se ficasse no campo da retórica, da poesia, e da metáfora, seria lindo. Mas o Dante sugeriu que realmente o cachorro retornava de alguma outra dimensão, e que o visitava semanalmente. Sandice assustadora.
Loucura ou não, mamãe determinou que deixássemos ele em paz, com suas viagens fantasiosas. No fim, sua fértil imaginação proporcionava-nos momentos deliciosos de fina retórica. E assim concordamos em tratá-lo com amor e entender a sua loucura.
Como desejado pelo irmão caçula, na quarta-feira minha mãe apareceu com o osso de paleta bovina e entregou ao Dante. Este, agradeceu muito pelo presente do Pantera. Correu para o quarto, e quando o relógio bateu duas horas eu pude ouvir Dante manifestar felicidade com a “chegada” do seu cão espectral. Pelos ruídos e algumas palavras que ouvi ele dizendo, trocou uma longa conversa com o Pantera .
Não me aguentei, cai na risada e procurei por mamãe a fim de fofocar a entretida e alegre balbúrdia proporcionada pela visita fantasmagórica do cão. Mamãe, entretanto, não fez cara de quem se preocupou com aquela loucura do filho caçula, pelo contrário , me deu uma reprimenda. “Deixe o Dante em paz, por favor!” Afastei-me chateado.
A tranquilidade da minha mãe permaneceu até na manhã seguinte, quando então um detalhe das estranhas situações ocorridas no quarto de Dante na noite passada, gerou nela torturantes preocupações com o filho caçula e suas alucinações com o cachorro.
Por volta das nove da manhã, minha mãe estava estendendo roupa no varal e repentinamente viu Dante se aproximando com o que sobrara do osso. “Olha, mamãe, o Pantera matou a vontade. Roeu tanto que ficou só a parte de baixo.” Deixou o osso com ela e voltou feliz para seus livros herméticos. “Sexta-feira ele vem de novo. Se conseguir outro osso, agradeço mamãe.” Eu espiava do quintal, minha mãe se manteve com a expressão apavorada e, quando me viu, caímos na risada. “Douglas, agora falando sério, viu. Meu receio é que ele machuque a boca, ou se infecte com alguma bactéria no osso. Aí, meu Deus, que loucura!”
Mamãe serviu o jantar quando todos estavam presentes, menos o Dante, que jantava quase sempre em seu quarto. Mamãe contou para os meus irmãos o ocorrido com o osso. A conversa sobre a demência do caçula voltou à pauta familiar. Preocupados, decidimos ver o que iria acontecer na sexta-feira, quando o cachorro viria visitar o Dante. E assim aguardamos curiosamente a visita do cão fantasmagórico e o que seria do osso.
Na sexta-feira, Dante procurou mamãe no mesmo horário da primeira visita do Pantera . E às duas da tarde, eu, mamãe, Márcio e Israel ficamos de ouvidos atentos na sala, ouvindo Dante entretido numa louca conversa com o seu amigo espectral. A situação era grave, entretanto, ninguém escapou de rir do estranho e engraçado episódio. Agora, só restava aguardar a manhã seguinte e ver o que sobraria do osso.
No sábado, no disciplinado horário estabelecido pelo irmão caçula, eis que ele sai do quarto segurando o toquinho do osso, passa pelo corredor e vira à direita, indo ter com a mamãe, na Lavanderia. Entregou-lhe, todo feliz, o resto da comida do seu cachorro, o toco da paleta. “Mãe, o Pantera gosta mesmo desse osso de paleta!”
Tão logo o Dante se trancou no seu quarto, a família voltou a se reunir, entre suspiros e momentos hilariantes. Márcio sugeriu à mamãe para que ela procurasse o padre Nelson, esclarecesse a situação, pedindo sigilo total, e que o padre batesse um papo com o jovem de comportamentos peculiares. O padre tinha fama de psicanalista. Mamãe procurou pelo pároco naquela tarde mesmo. O padre ficou de ir almoçar conosco no domingo, ocasião em que trocaria uma conversa com o deslumbrado Dante.
Segundo minha mãe nos disse, o religioso ficou muito empolgado com a curiosa situação do menino. Prometeu fazer de tudo para ajudar no que fosse possível. E no domingo o padre almoçou com a gente. Via-se na sua face o desejo gritante de traçar uma longa conversa com o menino do quarto. Antes, porém, minha mãe alertou o padre sobre a imensa erudição do filho caçula. A observação feita por mamãe instigou ainda mais a curiosidade do padre Nelson.
Dante aceitou gentilmente falar com o padre. Na verdade, até ficou feliz. Só exigiu uma condição. Receberia o homem em qualquer lugar da casa, menos em seu quarto. O combinado não sai caro e, conforme as condições impostas e aceitas, a conversa se deu na cozinha, onde os dois ficaram frente a frente, e mais ninguém.
Mamãe, eu e meus outros dois irmãos ficamos na sala, tentando ouvir a conversa do irmão caçula com o padre Nelsão. Não nos foi possível ouvir o que um dizia ao outro, contudo, captamos e identificamos o estado de ânimo daquelas duas pessoas de fala prolixa, com floreios retóricos. No início parece que o Bate-papo foi áspero. O padre aparentemente inquiriu o Dante sobre sua suposta demência. Pelo tom das respostas, cujo conteúdo captei, a sensação que tivemos foi de que a coisa caminhava com desconfortáveis passos. Entretanto, meia hora depois, aqueles dois entraram numa espécie de euforia intelectual. Em pouco tempo, ambos trocavam longas risadas. Uma hora se passou, Dante chama a mamãe na cozinha e pede gentilmente que prepare o seu saboroso café para o Nelsão saborear.
Sim, Dante já conquistara inteiramente a amizade daquele homem sexagenário. Nesse momento, eu pude ir até a cozinha. Vi nos olhos do religioso um brilho de real encantamento pelo jovem Dante. Sim, o meu amado irmão caçula tinha o dom de hipnotizar quem quer que seja que o ouvisse falar. O padre era pura empolgação. Seus gestos de amistosidade para com o seu companheiro de conversa parecia expressar traços de uma reverência quase religiosa. Com o café pronto, deixamos os dois sozinhos novamente. E permaneceram em vigoroso diálogo por mais uma hora e meia, até que o padre se lembrou de um compromisso vespertino. Antes, porém, inacreditavelmente, Dante levou o seu amigo Nelsão para conhecer as dependências do seu Laboratório Espectro-multidimensional.
Os dois entraram no quarto, e permaneceram por mais meia hora de agitada prosa. Da sala, ouvíamos o padre suspirar como se a cada instante se surpreendesse com algo que Dante lhe mostrava. Ao saírem do quarto, todos ouvimos parte de algumas considerações do padre para Dante. “Interrompa seus experimentos… Minha orientação é que leia o Corpus Hermético novamente, mas com o prisma científico das atuais descobertas quânticas. Vou-lhe enviar um livro pelo coroinha da Paróquia. Obra raríssima. Se a mitra suspeitar que tenho um velho alfarrábio outrora proibido pelos místicos cristãos… Buscariam com força policial.” Dante e o padre, ao nos avistarem, trocaram sinais e cortaram o misterioso assunto. O padre deu um último conselho ao caçula : “Nada de experimentos… Não antes de ler o antigo livro. Amanhã, creio, chega até você. Tchau, Dante. Lá, no universo, aponte lá. Entendeu?” O religioso se despediu do seu agora novo amigo. Meu irmão retornou para o seu quarto, e eu com minha mãe, acompanhamos o padre até o portão.
Só quando atingimos o portão que minha mãe, concluindo estar numa distância segura e impossível de ser ouvida pelo Dante, perguntou ao padre sobre as impressões que teve em relação a saúde mental do filho, dentre outras preocupações.
Padre Nelson ficou nitidamente emocionado, agradeceu a minha mãe por dar-lhe o presente da amizade com o jovem Dante. Informou que ele e o jovem já combinaram de se ver na terça-feira próxima. O padre insistiu para que eles se encontrassem na casa paroquial, contudo, o jovem não aceitara a ideia, de modo que o padre viria novamente em nossa casa. Pediu, quase implorando, autorização para a minha mãe, a qual aceitou com prazer. Ficou feliz em ver o filho criar um vínculo de amizade depois de anos recluso. Era um bom sinal. Com essas considerações, o padre manifestou a sua opinião sobre o jovem Dante.
“Olha, Senhora Marina, de fato, ele me contou sobre o seu cachorro fantasma. Eu quis mostrar-lhe a irracionalidade daquilo tudo, e foi então que ele me desmontou, destruiu-me com argumentos teológicos, e, inteligentemente, usou a minha fé, cuja base passa ao largo do raciocínio científico, para me colocar numa paradoxal posição. Quando ele citou o dogma católico da transubstanciação, e me desafiou a demonstrar qual o fundamento racional do fenômeno, para logo depois dissertar sobre assuntos da mais alta complexidade, juro, naquele momento eu me dei conta da espantosa bagagem intelectual do seu filho. As coisas que ele me disse, sua surpreendente construção literária de metáforas para ilustrar um ou outro argumento de maior complexidade, olha, Senhora Marina, fiquei impressionado.”
A voz do padre ficou embargada, ele pousou sua mão direita no ombro da minha mãe. O homem religioso lutou bravamente com seu sistema fisiológico para bloquear as lágrimas que insistiam saltar de seus olhos vermelhos, aquele rubor que antecede o choro da alma.
“Olha, veja bem, Senhora Marina. Entrei na sua casa como um padre, cuja formação eclesiástica de quase uma década me fez debruçar sobre livros de filosofia, álgebra, literatura e teologia, além de línguas. Entrei como o padre que ajudaria uma suposta alma enlouquecida de um triste jovem. Agora, saio da sua casa como amigo daquele espantoso menino. Um jovem que traçou comigo, na mesmo nível, e talvez aqui eu esteja sendo injusto, pois hoje, naquela mesa da sua cozinha eu mais aprendi do que ensinei. Enfim, quero manter o vínculo que criei com o seu caçula. Talvez com o tempo eu consiga reinseri-lo na comunidade. Não vi nele nada que o desabone. Longe de ser um demente, é um jovem de mente absurdamente brilhante. Além disso, estar com ele é como estar diante da serena tranquilidade das paisagens mais belas do mundo. A sensação de estar diante não do belo, mas do sublime. Cuide bem dele. Passou por momentos traumáticos. É dono de uma alma Sensível, posto que é vasta. Vamos dar tempo ao tempo. Terça-feira venho vê-lo. Obrigado pelo almoço. Tchau pra vocês.”
Eu e minha mãe voltávamos para dentro de casa, e ela, lascando as mãos para o céus, imitou o padre: “Lá, no universo, aponte lá.” Quase que rolamos no chão de tanto rir. E eu emendei a piada da mamãe. “O padre Nelsão é mais maluco que o Dante. Hahahaha”
O tempo passou e a amizade do Dante com o Nelsão, assim ele se referia ao padre, aumentou dia a dia. O pároco praticamente virou um membro da nossa família. Suas visitas, inicialmente uma por semana, passaram para duas ou até três vezes na semana. O cão fantasma também continuou a visitar o Dante como sempre fizera. Nelsão continuou a entrar no Laboratório do Dante, mas nunca confirmou ou negou a existência do cão espectral. Agia com uma suspeita cumplicidade, desconversava.
Fosse verdade ou não a existência do cachorro espectral, esse acontecimento fantástico passou a compor a rotina da casa, de modo a ninguém mais se preocupar com a sua natureza inacreditável. Importava para nós a felicidade do nosso irmão caçula. E ele gostava muito do Padre Nelson, e este também gostava muito do Dante, e não há nada mais valoroso do que a amizade desinteressada.
Um ano e meio voou, e Dante passara a se comportar de uma maneira mais sociável. Ganhara do Nelsão um notebook sofisticadíssimo, o qual potencializou ainda mais a sua busca pelo conhecimento. De casa, Dante passou a ter acesso aos mais atuais estudos acadêmicos disponíveis nos bancos de dados das instituições de ensino e departamentos científicos. Sem contar que com o notebook ele frequentava diversos fóruns de debates, trocando ideias e estabelecendo vínculos, mesmo que virtuais.
Dante era meio avesso à tecnologia, e me recordo bem quando o Nelsão apareceu em casa com o presente, embrulhado num papel de textura verde. Minha mãe correu chamar o sortudo para receber o presente do amigo, que o aguardava na sala, na minha companhia.
Quando Dante desembrulhou a caixa e viu que se tratava de um notebook, para chateação de todos, fez cara de quem não gostou. Padre Nelson, contudo, não demonstrou qualquer abalo, reagindo de forma incisiva e professoral. Sem se preocupar com a minha presença e da mamãe, disse ao jovem insolente: “Entenda como uma ferramenta de trabalho. Aprende-se ciência sozinho, imita-se até feitos de outros, mas não se evolui um passo adiante sem a cooperação da comunidade…” Ao Dante, reduzido a um discípulo indisciplinado diante do seu mestre que o repreendera, restou uma única e óbvia resposta: “Obrigado”. Logo, sumiram para o interior do Laboratório.
Às vezes o Nelsão vinha com algumas ferramentas, quase sempre as ocultando sob lençóis. Os dois se trancavam no quarto e, por várias vezes, tive a impressão de ouvir pequenas explosões lá dentro do laboratório. Às vezes eu observava estranhos feixes de luzes de matizes desconhecidas. Numa oportunidade, o padre saiu com a barba chamuscada. Com uma risadinha sem graça, dava no pé quando minha mãe o inquiria sobre aquelas excentricidades. “Vocês vão se machucar, Nelsão!”
O padre mentia descaradamente para a mamãe, dizendo que era parte da estratégia para levar o jovem Dante ao convívio social. “Tenha paciência, Senhora Marina.” E cada dia mais o padre se espantava com a evolução não só intelectual do seu amigo, mas também espiritual. “Seu caçula beira à o sobrenatural”, dizia o Nelsão. “Os loucos se entendem”, comentava o nosso irmão Márcio.
A essa altura, o pároco de quando em quando vinha acompanhado de algum superior da Igreja Católica ou algum amigo seu do meio acadêmico. O bispo da região, um senhor extremamente erudito, que dominava seis línguas, e era tido como um dos mais renomados teólogos do Brasil, respeitado pelo alto escalão do Vaticano, veio com o padre Nelson em duas ocasiões visitar o Dante.
A conversa entre os três se arrastava por quase cinco horas, como pude registrar. Insistiam com o Dante para retomar os estudos. Meu irmão já dominava o inglês, francês, espanhol, alemão, além do latim e russo. O bispo lhe ofereceu uma bolsa de estudos na Europa, contudo, ele refutou o convite. Preferia continuar seus estudos em seu laboratório espectro-multidimensional.
“A sua arrogância é surpreendente, rapazinho. “, dizia-lhe o afetuoso Nelsão. Num daqueles encontros, o bispo José foi além, cutucou o jovem metido a mago: “Você sabia, Dante, que a Alquimia que você tanto preza, hoje é considerada uma pseudociência, uma tola superstição?” Na ocasião, a família e os visitantes estávamos reunidos na mesa, café servido.
Dante então respondeu ao superior eclesiástico, com sua conhecida serenidade. “Tenho me deparado com essa majoritária opinião do meio científico. Eu também comungaria desse entendimento se não fosse capaz de experimentar sensações outras cuja apreensão está fora do alcance dos sentidos humanos. Não sei como, mas enxergo o que é dado como inexistente para a compreensão humana padrão.” O padre ouvia, malandramente, os argumentos do amigo, com aquele seu olhar de cumplicidade, conhecido há muito conhecido por nós da família, seguido de risos traidores da discrição. O bispo, em constantes olhadelas, suspeitava fazer o papel de bobo no meio daqueles dois conspiradores. Era o que sua cara de sonso me parecia externar, enquanto tomávamos café.
Em uma outra oportunidade, Nelsão visitou Dante acompanhado de uma professora de Astrofísica, livre docente, cuja vida se resumia em ministrar aulas e coordenar pesquisas numa Universidade Federal, bem como participar, rotineiramente, de encontros internacionais de cientistas.
Não se tratava de uma cientista anônima, mas sim de uma estrela nas estantes das livrarias, por conta de seu frutífero trabalho de divulgação científica. A brilhante cientista Brasileira, Clarice Júlia Fagundes. Quando eu, retornando da escola, deparei-me com aquela estrela na minha casa, tomando café com a minha mãe, quase desmaiei. Dante estava feliz, e mostrava-me um dos livros da Clarice, deixando-me com inveja. “Ganhei um autógrafo e uma dedicatória gratificante.”
A professora Clarice, após trocar um longo e saboroso bate-papo com o jovem anfitrião e seu amigo padre, e já tendo conhecido as dependências do Laboratório Espectro-multidimensional, saiu com as impressões mais auspiciosas sobre o potencial do Dante. Ciente da dificuldade de interação social do jovem, o qual chamou de “diamante das ciências”, ofereceu disponibilizar as aulas da universidade pela ferramenta de vídeo conferência, mas a sua realização dependeria da aprovação do Dante numa prova de proficiência em Física, Química, Biologia e Matemática, e redação.
Dante, logicamente, gabaritou o exame, porém, bateu o pé, e só aceitaria efetivar a sua matrícula se acrescentassem à grade curricular do curso o estudo da Filosofia e das artes, principalmente Literatura. A instituição entendeu o seu pedido como fruto de seu “inflado ego”.
Correram-se alguns dias de desconforto, e a professora Clarice implorava ao Dante para seguir o curso com o conteúdo programático já definido, e que aquelas outras áreas do saber seriam disponibilizadas como estudos complementares. A professora já até conversara com seus colegas de humanas, e muitos se propuseram a contribuir com a formação do garoto. Dante aceitou, para a felicidade de todos.
Depois de alguns meses da sua matrícula, a professora Clarice, em sua segunda visita em nossa casa, no conforto da modesta cozinha, entre xícaras de café e fatias de pão caseiro tostadas na manteiga, perguntou ao Dante: “Antes de você me conhecer, pelo que me demonstrou daquela minha primeira vinda, já detinha profundos conhecimentos de Filosofia e artes. Por que quase colocou tudo a perder?” Dante, me lembro bem, servia-nos café, brincou com os cabelos grisalhos do Nelsão, e, voltando-se para Clarice, respondeu: “Não era exatamente para mim, mas para a turma toda. Para onde a humanidade caminhará quando tudo se resumir a uma fria objetividade?” A sua resposta, na verdade, não era uma reposta, mas uma isca apetitosa para instalar um intrincado diálogo sobre o papel da ética na ciência, à luz da sua duvidosa imparcialidade ideológica.
O fato é que o “diamante da ciência” concluiu o seu curso com a incrível marca da metade do tempo exigido oficialmente. Bacharelou em dois anos, a despeito de seus colegas de turma inicial terem ainda mais cinco anos pela frente.
A física quântica era a bola da vez, e as suas questões, que se manteriam por um longo tempo em aberto, agitavam a comunidade científica. Aqui e acolá, surgiam novas hipóteses sobre, dentre outros pontos, a matéria escura, a antimatéria, e os buracos negros. Para cada hipótese brilhantemente apresentada, sucedia-se uma estrondosa refutação.
Dante, particularmente, na solidão do seu quarto, voltava a sua atenção para a teoria do multiverso, e dos mais intrincados e bizarros fenômenos da Física Quântica. Um ano depois de conquistar o diploma de bacharel, Dante chamou a atenção para um novo objeto de estudo da Física, afirmando ser um passo além da Física Quântica. Nesse episódio, de repercussão mundial, ele foi ridicularizado e sua fama de “diamante da ciência” se dissolveu inteiramente no meio científico, e até nós da família ficamos abalado com o seu desastroso movimento.
A professora Clarice, empolgada com o notório conhecimento científico do seu aluno, quis apresentá-lo diante das mais notáveis mentes do mundo, alguns ostentando a estatueta do prêmio Nobel. Clarice, inscreveu o Dante para representar o Brasil no Seminário Mundial de Astrofísica, realizado em Baltimore, EUA. Em destaque, a participação do físico teórico Stenius Marvin, considerado o maior cientista da atualidade. A participação do meu irmão se daria por teleconferência, mas não foi algo exclusivo, pois mais dois ou três cientistas também participaram remotamente, com as ferramentas virtuais e interativas.
A intervenção do aluno da Doutora Clarice se resumia unicamente na explanação, sintética, das contribuições brasileiras no campo da aceleração de partículas. A renomada professora, talvez por desconhecer as excêntricas teorias e hipóteses cientificas que borbulhavam na mente do seu pupilo, ou, se as conhecia, jamais imaginaria que Dante, ao ser confrontado por um famoso cientista, reconhecido mais por seu engajado ateísmo do que por suas contribuições científicas, iria expor, prematuramente, suas abstratas e incognoscíveis ideias.
Em verdade, conforme Dante descobriu posteriormente, ele caiu numa armadilha, pois toda a situação fora engendrada por um colega de universidade, um desafeto seu que, movido pelo ressentimento ao se sentir ofuscado pela escolha de Dante para representar a comitiva brasileira, quase demoliu o lentamente reconstituído alicerce psíquico do meu irmão.
Depois do ocorrido, Dante me disse ter procurado pelo colega, falando-lhe, sem qualquer rancor: “Se eu soubesse que era tão importante para você, juro que eu o teria indicado em meu lugar. Não foi a vaidade que me fez participar, mas a minha gratidão por tudo que a professora Clarice fez por mim.” O episódio foi tão traumatizante para o meu irmão que o forçou, surpreendentemente, a sair de casa e se encontrar pessoalmente com o seu desafeto. A preocupação do Dante, contudo, não era o deboche que sofrera no Seminário e depois dele, o que o torturava era a decepção da professora Clarice; mais do que o jogo preferido da academia, do Verdadeiro ou Falso, o que lhe interessava prioritariamente era o nível de excelência de seus poucos, porém, vitais afetos interpessoais.
Inobstante os constrangimentos e desconfortos causados pela mente excêntrica do Dante, o fato é que aquela maliciosa pergunta de Charles Donalds foi a pedra fundamental de uma nova e futura área da Física, cujo objeto tornou o próprio termo “Física”, pequeno, para não dizer inadequado.
O engajado ateu, após ouvir a apresentação do jovem e promissor cientista brasileiro, pediu permissão para fazer uso da palavra e, uma vez lhe concedida a primazia do diálogo, retirou-se da mesa central, onde se acomodavam os convidados notáveis, dirigindo-se até o púlpito. Com o microfone devidamente posicionado, chamou a atenção dos cientistas participantes e dos expectadores, sobre a circunstância curiosa que motivou a sua intervenção naquele momento. Percebendo o vigoroso interesse despertado na plateia por seu incomum introito, deu uma leve e sarcástica risadinha, e voltando-se ao Dante, contextualizou o público e depois perguntou: “Pois bem, senhor Dante, brilhante jovem cientista brasileiro. Ouvi com atenção as relevantes contribuições científicas do Brasil para o estudo da Física, entretanto, conforme me disse um passarinho, creio eu que o senhor omitiu para o mundo sobre os seus pessoais e inéditos estudos. Segundo aquele mesmo passarinho, o senhor se propõe a ir além, muito além, da Física Quântica, cujo domínio ainda começamos a engatinhar. Seu íntimo objeto de estudo, talvez exclusivo, desculpe se ignoro haver outro cientista no mundo comungando de semelhantes conjecturas… Creio que não, e creio até que tal ineditismo de suas divagações possa ser creditada ao famoso poder criativo do povo brasileiro…”
O inquirido, nesse ponto irônico de sua introdução, teve a palavra interrompida por uma chuva de aplausos e uma estrondosa gargalhada coletiva, em especial dos notáveis enfileirados na mesa central. Menos um, com exceção de um dos notáveis. Eu não pude concluir na hora se a sua permanente seriedade se manteve por sua impossibilidade de instantânea manifestação ou se foi fruto da sábia cautela que nega externar o pré-julgamento. Só em, seguida dei conta daquilo.
Restabelecido o silêncio, o experiente orador lançou mão de mais um truque retórico, realçando o seu escancarado objetivo de ridicularizar o jovem cientista. “…Ou talvez, dadas as extraordinárias especulações do cientista brasileiro, o ineditismo, que atropela a ostensiva e rígida metodologia científica, se dá porque ‘Deus é brasileiro’, como se diz…”
O efeito esperado por Donalds vingou, e novas gargalhadas retumbaram pelo auditório, mais alongadas. Charles Donalds partiu para o nocaute, antes de finalmente ensaiar concluir a sua pergunta. “Senhor, Dante, ainda está online?” Os notáveis ainda riam, e diante da possível fuga do cientista interrogado, todos entreviram a tela, surpresos com o semblante calmo do jovem cientista.
Donalds foi o último a se voltar para o telão, talvez acreditando ter realmente botado para correr o aspirante à cientista. Contudo, ao constatar que Dante ainda estava lá, ativo na tela de conferência, não dando sinal algum de ter se abatido, o ácido inquisidor se ruborizou, tossiu como quem é pego em flagrante deslize, e antes que pudesse reiniciar a sua fala, o brasileiro o atravessou com estrondosa presença. “Sim, ainda estou aqui, e por que não estaria? Inobstante os seus comentários, é verdade, engraçados, porém carregados de uma triste e inapropriada carga preconceituosa, no contexto de um Seminário Internacional…A minha participação tem um propósito definido, o qual reputo ter cumprido como previsto, agradecendo a nossa mais ilustre cientista, a professora Clarice Fagundes, que compõe, de forma justa, a mesa de notáveis, logo atrás do Senhor. Entretanto, se a mesa entender que é possível e permitido o diálogo de assuntos estranhos aos tópicos determinados previamente pela equipe organizadora, não me furtarei a responder o que estiver ao meu alcance. Agora, uma observação, Senhor Donalds, seja objetivo. A sua atraente eloquência pode servir muito bem aos interesses mercantes de seus agentes editoriais, mas não se encaixa aos nobres propósitos do evento.”
Dante deu a resposta que o seu oponente merecia, porém, não era a melhor opção. Comprou briga com um cientista famoso, best-seller, ativista do movimento ateu, seguido por milhões de pessoas em suas redes sociais. Via-se na cara do Donalds o quão violento lhe foram aquelas palavras do jovem brasileiro. O experiente cientista, acostumado com o fervor dos debates, recompôs-se rapidamente, entretanto, a sua fisionomia apresentou alterações sofríveis, o que me levou a imaginar que se o seu objetivo inicial era apenas ridicularizar as ideias excêntricas do jovem brasileiro, agora o objetivo era aniquilar, de uma vez por todas, o “diamante da ciência”.
“Certo, certo… me perdoe, não foi a minha intenção ferir o sentimento nacional de ninguém. Foi apenas uma forma alegre de iniciar uma conversa. Reitero aqui o meu profundo carinho pelo povo brasileiro. E poderia passar horas aqui lembrando grandes nomes da ciência brasileira, destacando os interessantes estudos do professor Mário Novello, pioneiro da Cosmologia Cíclica. Mas enfim, retomando o traço da objetividade muito bem lembrada pelo Senhor Dante, vamos à pergunta. Pelo que tive acesso sobre suas pretensões científicas, o senhor se propõe a lançar os seus potentes poderes cognitivos para além da física, da matéria e da energia, e de tudo que até onde o nosso incipiente horizonte científico alcançou, na timidez das nossas dúvidas persistentes. Seu propósito é, incrivelmente, em poucos anos trazer informações capazes de possibilitar produção tecnológica de saltos dimensionais? Literalmente, cortar caminho pelo espaço sideral, nos conhecidos buracos de minhoca. Se não bastasse isso, propõe-se a acessar o multiverso, de infinitas versões para fatos do mundo fenomenológico. Como, me esclareça, como dar um salto tão drástico no conhecimento científico sem que antes.., sem que saibamos a natureza da última divisibilidade da partícula?”
Dante cedeu aos objetivos do seu interlocutor.
“Não me interessa me debruçar sobre matéria, não pelos métodos triviais, almejando até que ponto podemos fatiá-la. Sim, para o desenvolvimento tecnológico é extraordinário o resultado da otimização do bens escassos da natureza. Eu compreendo. Ora, 99,9% do mundo acadêmico, dos pesquisadores, debruçam-se sobre o corpo do mundo e dissecam as profundezas da matéria. O meu olhar seria apenas mais um a contribuir, e nada mais. Entretanto, utilizarei desse esforço majoritário da comunidade, e com base em seus dados testados e comprovados, ajudarei a, no âmbito intergaláctico, desenvolver a nova área da Física, talvez a sua última fronteira…”
Dante municiou o oponente, e suas insólitas afirmações, as quais foram cirurgicamente pinçadas pelo experiente cientista debatedor, foram jogadas no ouvido dos expectadores com uma bomba avassaladora. “Eu ouvi direito? O senhor sugere que os seus estudos fazem parte de um esforço… Inter galático? Rapaz, pare o mundo, eu vou descer!”
As gargalhadas ressurgiram ainda mais ruidosas. A professora Clarice, nitidamente abatida, tentou encerrar o que ela adjetivara de “desnecessário debate”. Mas ninguém queria abandonar o onírico desdobramento do confronto Donalds/Dante. Antes de serem cientistas, quase todos ali presentes foram ávidos, e ainda eram, ávidos leitores de ficção científica. Naquele momento ninguém queria ouvir sobre os recentes resultados dos aceleradores de partículas, o interesse geral mirava as linhas básicas da pretensa nova área da Física, esboçada pelo jovem brasileiro. E tudo ganhou uma imensurável dimensão quando, inesperadamente, o equipamento de som das dependências do auditório reproduziu o inconfundível sotaque robótico do mais notável dos notáveis cientistas participantes, o astrofísico Stenius Marvin. “Conclua a sua pergunta, Donalds, estou ansioso para ouvir esse fascinante arroubo criativo do colega brasileiro. E, se me permita, gostaria de, ao fim e ao cabo dos esclarecimentos dele, humildemente tecer breves considerações…”
O intenso interesse demonstrado pela mente mais brilhante do mundo contemporâneo trouxe uma relativa tranquilidade a professora Clarice, um certo orgulho que amenizava o desastre da apresentação brasileira, assim ela teria nos dito dias após. E o bate-papo instigante reiniciou.
“Seu pedido é uma ordem, caríssimo Marvin, o cientista das grandes indagações de nosso tempo! Pois bem, senhor Dante, esclareça-nos, em especial ao mestre dos mestres, Mister Marvin, que nome sugere à futura, ou pra agora, nova área da Física? Quais as fontes da sua partida teórica? O que nos está posto é já disponível ou o que se espera para o amanhã do lento, porém, impávido caminhar da ciência? Parece que o senhor busca argumentos metafísicos para alcançar o exagerado salto científico, Senhor Dante? É fascinante aquela cosmogonia hermética, é poético aos nossos ouvidos, mas não, não é, sólido quando confrontado com o exaustivo método científico… Pois bem, senhor Dante, sinta-se livre para os esclarecimentos devidos…”
Dante não se cabia de tanto orgulho, olhando pela tela o rosto distorcido do seu ídolo Stenius Marvin, dono de uma incrível mente e também de uma imperturbável resiliência.
“Ilustre Donalds, no concernente às minhas eventuais relações com “os cerebrais”, assim denominamos os membros da Fundação Enciclopédia, de abrangência intergaláctica, reservo-me no direito de silenciar, até porque não tenho autorização para divulgar o que soaria inaudível para o atual entendimento humano. Alerto, no entanto, que minhas interações, digamos, extraterrestres, se deram e se dão numa graduação daquilo que minhas sensações rudes captam, e de como nossos irmãos do universo se manifestam no limite máximo da compreensão humana. O que me chega é, um resquício de informações, uma esforçada adaptação da realidade. Um quebra-cabeça cujas peças também são minúsculos quebra-cabeças, a exigir-me o que, confesso, ainda não detenho plenamente. Mas, pulemos essa parte…cuja seu aspecto extraordinário causa espanto aos ilustres colegas. O nobre biólogo me pergunta o nome da inédita área por descoberta. Não sei se o termo descoberta é o mais apropriado, e, como bem lembrou o nobre Donalds, de fato, minhas hipóteses exigem o retorno ao rico e poético conhecimento das antigas ciências, entretanto, à luz de seu simbolismo poderoso, de modo que resta afastada qualquer nuance literal. Ora, o Senhor, a pouco, se referiu, respeitosamente, à teoria oposta do Big Bang, a cosmologia cíclica. E esta respeitável visão não tem um precedente na filosofia budista? Ora, não vou me arrastar sobre essas felizes e espantosas coincidências especulativas comungadas pela exigente ciência e sua subjetiva irmã, a poesia, a criatividade humana primordial. Ora, sejamos humildes, Senhor Donalds, zombar daqueles homens de milênios atrás, que foram capazes de chegar a conclusões certas ou muito próximas da verdade, mesmo sem qualquer equipamento, quando sequer se imaginava a luneta? Ora, há milhares de imbecis mundo afora que negam a forma esférica do planeta, e um homem, que viveu quatrocentos anos Antes da Era Comum, com sua aguçada capacidade de observação, uma vara, e conhecimentos rudimentares de matemática, não só concluiu pela forma circular da Terra, como errou por metros o seu tamanho? Desculpe-me, mas se tornar um brilhante biólogo numa época de potentes microscópios e uma rede global de troca de informações, com a devida vênia, não o autoriza, e nenhum de nós, sequer, a pensar em reduzir aqueles primeiros desbravadores do saber. O senhor cogita um suspeito interesse metafísico da minha parte. Ora, Senhor Donalds, pois saiba que se o acaso e os meus estudos me brindarem em viver a experiência de romper os horizontes do universo, e se, pelo caminho, eu me deparar com Deus, acredite, olharei para os olhos de espanto dele, sim, pois ele deverá perguntar: ‘um humano por aqui?’, eu lhe responderei com a familiar arrogância humana: ‘Vou logo ali, além de você, na volta conversaremos’…”
O auditório sofreu um abalo sísmico. As gargalhadas tornaram a ocupar o ambiente. E o silêncio só foi restabelecido depois de reiteradas intervenções do cientista da voz computacional sintetizada. “Prossiga, Senhor Dante, prossiga… Prossiga… Qual nome propõe para o novo horizonte que nos desenha? Prossiga, prossiga, estou estupefato…Se não prosseguir, morro agora… Eu juro…. ”
O cientista soltou uma risada, contudo, o equipamento de alta tecnologia, o seu potente e exclusivo sintetizador de voz, não conseguiu traduzir com perfeição a emoção de humor alegre, reproduzindo um chiado de rádio FM fora de frequência.
“Sim, sim, ilustre Marvin, concluirei. Antes, contudo, lembrei de uma piada inteligente que o ilustre senhor fez a respeito da teoria criacionista e os bíblicos sete dias que Deus teria levado para criar o mundo. Se me recordo bem, o Senhor comentou que antes da singularidade não existia o tempo, e portanto, Deus não teria tempo para criar nada. Ora, se eventualmente eu encontrar Deus nas fissuras do tecido espaço-tempo, seria deselegante da minha parte perguntar ‘Que horas são?’ Não me culpe se um raio lhe partir a cabeça!”
Uma nova rodada de risadas e conversas paralelas foram desencadeadas pela inteligente referência feita por Dante. E eis que a voz robótica restabeleceu a disciplina do evento. “Conclua, espirituoso Dante, conclua.”
“Enfim, o nome que proponho para a área que desvelo aos senhores é Física Horlística.”
Nesse momento, restou claro no semblante dos notáveis a total incompreensão etimológica do termo utilizado por Dante. Um dos notáveis tirou uma dúvida de pronúncia. “Você disse Física Horlística. Mas quis dizer Holística? Eu ouvi errado?”
“Não, ilustre colega. O senhor ouviu corretamente. Eu falei Horlística… H…O… R… L… I… S…T…I…C…A. Para clarear, a expressão é uma homenagem ao escritor francês Guy Maupassant, quem cunhou o termo Horla, que dá título a sua obra literária de maior quilate…”
Infelizmente, o sinal de transmissão do Dante caiu logo após se referir à origem do termo Horlístico. Sua desconexão deixou todo mundo no vácuo, pois ninguém dos notáveis conhecia o termo e poucos se lembravam vagamente do mencionado escritor da Normandia. Nem mesmo a professora Clarice Fagundes, a qual passou a ser assediada por todos os notáveis, ávidos por obterem informações complementares, uma vez que o fascinante cientista Dante ficara incomunicável. Mas ela não tinha nada a acrescentar, pois pouco sabia da recém-nascida Física Horlística, muito menos de seus fundamentos.
Na semana que se seguiu ao famigerado Seminário, o termo Física Horlística foi capa das maiores revistas e periódicos científicos do mundo. Os cadernos específicos dos jornais diários divulgaram estudos linguísticos visando a lançar luzes sobre o neologismo Horlístico, destrinchando a sua composição etimológica, e não houve um estudioso das letras que não reconheceu a difícil decomposição, na medida em que na origem do termo Horla, criado pelo escritor Guy de Maupassant, já existia a divergência em sua conceituação.
Passada a euforia do ineditismo, e restabelecido a serenidade do mundo científico, com seus rígidos e destrutivos processos do teste de falseabilidade, milhares de artigos foram publicados refutando ardorosamente a pretensiosa Física Horlística, cuja etimologia retirada de uma obra ficcional fantástica, facilitou aqueles que acusavam Dante de ser, dentre tantos, um ilustre panfletário da anacrônica metafísica. Donalds escreveu um artigo exclusivo para a seção científica do The New York Times, com o seguinte título depreciativo: Física Horlística, o embuste brasileiro.
As excentricidades do meu irmão também, por outro lado, seduziram uma pequena, porém, respeitável parcela do meio acadêmico. Encabeçado por um polêmico físico russo, um grupo de dez cientistas redigiram um Manifesto em defesa da futura Física Horlística, incitando o “jovem cientista brasileiro”, a trazer a lume os fundamentos da sua ciência, “cuja mera sombra que se abatera sobre a Academia, por si só, chacoalhou o viés imediatista e utilitário que norteia todas as grandes pesquisas mundo afora”.
Dante, até então acuado com as fortes diatribes recebidas, ao ler o manifesto em sua defesa, recuperou as suas forças, e na solidão do seu quarto redigiu por dias um artigo científico, e cada tópico era uma bomba argumentativa contra cada uma das vírgulas e reticências que lhe lançaram nos milhares de periódicos acadêmicos.
Um mês depois da sua participação no Seminário Internacional, Dante, já com o artigo pronto, revelou seu conteúdo ao padre Nelson, bem como a sua intenção de imediata publicação. Eles conversavam na varanda, e eu, escondido atrás de uma coluna de tijolos, pude ouvi-los e, de esguelha, enxergar seus movimentos. Nelsão leu o artigo, o que lhe custara exatamente trinta e oito minutos, conforme anotei no celular. Enquanto lia, Dante mantinha seus os olhos fixos sobre o amigo, numa incontida empolgação. Nelsão concluiu a leitura, silente. Então, Dante o indagou: “E aí, gostou?” Sua decepção foi grande ao ser repreendido veementemente pelo amigo de batina.
Nelsão tirou o óculos, jogou-o no bolso da sua negra vestimenta. Estendeu a mão direita e lentamente encostou a sua palma na superfície da mesa. Esticou os dedos, estalou um a um, iniciando um frenético tamborilar na madeira. Dante nada fez, e ouviu o respiro profundo que seu amigo deu, antes de lhe dirigir fortes discordâncias.
“Dante, Dante, meu amigo… Você sabe o quanto gosto de você, sabe que, independente de qualquer coisa, a nossa amizade jamais será abalada pelo fluir de tudo que se manifesta diante de nós, nem acima, nem abaixo! Mas não é só a amizade que nutro por você. É verdade, também te admiro, e ninguém mais do que eu sabe o quão genial você é, e quão importante é para a possibilidade do amanhã… Ora, estamos juntos nesse, nosso, caminho sem volta, você bem me entende… É desnecessário até tratarmos aqui tais assuntos que nos é óbvio … O fato é, tudo bem, belíssimo o seu artigo. Três páginas dele são o bastante para um cientista qualquer experimentar uma apavorante explosão de descoberta. A humanidade daria uma extraordinária guinada científica, pulando etapas do conhecimento. E as inovações desveladas, muito além do seu tempo, encontrariam uma sociedade despreparada para recebê-las, moral e psicologicamente, para uma harmônica convivência com conceitos furtados do porvir…”
Dante, com uma voz embargada, tentou se explicar, mas o padre foi firme.
“Não acabei, me escute! É a primeira vez que você me decepciona. Juro. Achei que você iria se expor durante o Seminário, quando caiu na armadilha de bater boca sobre essas coisas extraordinárias para o agora. Sim, quase tive um infarto. Mas você se saiu muito bem. Seus argumentos foram vagos, abstratos, insinuantes. E o viés da comicidade facilitou o seu caminho. Mas agora, veja só! Você escreve um artigo para refutar seus… espera…espera, vou achar no artigo… Aqui… você os chama de “cegos materialistas”, e depois expõe os fundamentos da Horlística, reputa-os como seus, mas sabe que, não é totalmente… Você, meu amigo, você perdeu o senso da tamanha encrenca que estamos envolvidos? Sim, você sabe. E agora, o que é esse artigo senão a VAIDADE corroendo a sua esperada postura diante do ‘algo maior’. Quer aplausos? Quer confete? Quer ser laureado com um Nobel? Quer ver as capas dos seus promissores livros nas estantes de livrarias? Patético! Patético, meu amigo. Tome o teu revolucionário artigo. Faça o que bem entender. Uma última palavra: Supere o seu passado! Arrebente esses grilhões de uma vez por toda! Faça isso! Por você! Depois tome o horizonte como destino! Adeus!”
Padre Nelson abraçou Dante, e saiu portão afora, sem se despedir de ninguém mais. Dante se deteve ainda por alguns minutos na varanda, segurando as folhas do seu artigo. Ia de lá pra cá, então parou e rasgou com fúria o artigo, em pedacinhos como se buscasse a partícula subatômica da celulose. Partiu em disparada até o portão, espreitou a deserta rua, destravou o cadeado e se lançou na calçada, mas o Nelson já dobrara a esquina.
Vi Dante ensaiando uma perseguição ao amigo, e até imaginei ele correndo no encalço do Nelsão, como fez dias atrás ao procurar seu desafeto. Entretanto, não conseguiu avançar, retrocedeu a passos longos, lépido, até se sentir seguro no interior fechado de seu conhecido esconderijo.
Os amigos permaneceram alguns dias da semana sem se ver pessoalmente, e só trocaram algumas palavras na sexta-feira, pela manhã, ocasião em que o padre Nelsão ligara para comunicar uma curta viagem à capital, que lhe exigiria uma semana fora da cidade. Ficou feliz em saber da decisão prudente do Dante. Avisou-nos que no próximo sábado retornaria, por volta das dez da noite, ou um pouco menos.
No decorrer dos dias da semana sem o padre por perto, Dante se negou a atender às constantes mensagens e ligações da imprensa e de seus colegas cientistas interessados na Horlística. Só falou mesmo com a professora Clarice, a qual se acalmara daquele “episódio que merecia ser esquecido”. Do resto, tudo seguiu seu comum roteiro, com Dante e seu suposto cão espectral entretidos no quarto. E o sábado chegou.
Toda história tem o seu momento mais crítico, que desafia o verdadeiro valor do protagonista. O absurdo batera na porta de casa, e entrou sem pedir licença, atingindo toda a família, e colocando à prova aquelas últimas e duras palavras que o Padre Nelsão lhe dissera na varanda: “Supere o seu passado! Arrebente esses grilhões de uma vez por toda!” Chegou a hora, o último passo da superação? Quando a gota, na forma de vapor, se desprende da poça e, em reinicia a individualidade, agora plena e impávida?
O terrível e desafiador episódio teve começo e fim na noite de sábado, por volta das nove horas, justamente no esperado retorno do Nelsão. Como de costume, eu e o meu Márcio assistíamos TV na sala. Israel se casara e já não morava mais com a gente. Dante, naturalmente, encontrava-se em seu quarto, porta fechada, entretido com seu cão espectral e seus milhares de livros. Inesperadamente, três bandidos invadiram a nossa residência, fazendo-nos reféns, com exceção do Dante, ainda fechado em seu quarto.
Um dos criminosos deu uma coronhada na cabeça do Márcio. Ele sofreu um corte profundo na altura da testa, e passou a sangrar muito. Minha mãe gritou de desespero, eu tentava acalmá-la, enquanto os bandidos pediam que nos deitássemos no chão. Insisti para me deixarem pegar um pano a fim de estancar o sangramento do Márcio. Um deles me acompanhou até o banheiro. Peguei uma toalha e retornei à sala socorrer o meu irmão e depois me deitei no chão como os criminosos determinaram. Dante permanecia em silêncio em seu quarto, e pensei que talvez ele não se dera conta do que se passava na sala. No entanto, ele sabia, como percebi depois.
O aparentemente líder do bando perguntou para minha mãe. “Tem mais alguém na casa além de vocês?”. Minha mãe se demorou para responder. O bandido, furioso com o silêncio dela, aproximou-se, fez o movimento com a perna direita preparando o chute, contudo, Dante, ainda dentro do quarto, gritou-lhe: “Não faça isso, ou vai se arrepender profundamente.” Os três criminosos ficaram agitados, o chefe deles, desistiu de chutar a minha mãe, e dirigiu-se para a porta do quarto de onde saíram aquelas palavras. Deu três socos na altura da maçaneta, e falou com o Dante. “Oh, rapaz covarde, é bom você sair daí comportadinho, senão vou matar a sua mãezinha querida. Não me irrite! Vai, saia já!”
Dante com um postura colossal, pronunciou palavras que causaram espanto e pavor nos três bandidos. “Bernardo, você escolheu um dia ruim para visitar a mim e minha família…”
“O seu filho de um puta! Quem é você? Como sabe o meu nome? Eu nunca estive nessa merda de cidade? Você tem câmera ocultas pela casa, esperto? Como me identificou? Não brinque comigo, saia já… Traga o irmão dele aqui… Não o ferido… O outro… Vou dar soco na cara dele até que você saia daí, bunda mole… Traga esse chifrudo aqui…”
O chefe deles se referia a mim. Comecei a chorar, e um dos criminosos me pegou pelo antebraço, levantou-me, e ia me arrastar até a porta, então, em desespero, supliquei para que Dante fizesse o que o bandido lhe ordenara. “Dante, seu doente mental, você vai fazer a gente morrer. Saia daí. Por favor!”
O bandido que se encontrava rente à porta do quarto, voltou a falar com o Dante. “Quer dizer que o medroso é maluco?” Os três criminosos gargalharam. “Oh louco, você não ouviu o seu irmão? Ele tá todo mijando aqui. É você aí no conforto do seu quarto… Cara, não complica, tô ficando impaciente. Vou meter bala em alguém aqui e a culpa será toda sua!”
Dante continuou insensível ao perigo que a sua família passava do lado de fora do seu quarto. Aconselhou os criminosos. “Veja bem, meus senhores. Me ouçam, é tudo que peço, depois decidam o destino que se dará nessa casa. A casa é boa, bonita, grande. Meu falecido pai trabalhou muito para levantá-la. Quem vê a nossa casa pode concluir que somos ricos. Na verdade, temos uma relativa vida confortável, mas não temos dinheiro. Escolheram a casa errada para assaltar. Enfim, temos duas opções, a primeira, a melhor para todos, esclareço. Vocês vão embora imediatamente e nos deixam em paz. Prometo não comunicar a polícia sobre o ocorrido, possibilitando a vocês três darem o fora da cidade. Agora, a opção dois, e a coisa não será nada boa para vocês, acreditem. Vocês não vão gostar de me ver, vão se apavorar. Sinceramente, até eu estou com medo de mim mesmo. Pode acreditar. E meu cão fantasma não tá nada amigável hoje. Ele vai ferir vocês pra valer. Enfim, escolham, opção 1 ou 2?”
Os bandidos, embasbacados com a inesperada e absurda proposta do Dante, entreolharam-se, e o chefe perguntou-nos sobre o cão fantasma. Minha mãe disse que o Dante sofria de demência e que o cão fantasma era fruto de suas constantes alucinações. Os três homens voltaram a cair na risada. “Cão fantasma? Seu maluco!” Novamente deram risada da esquisitice do rapaz escondido no quarto. O líder então respondeu qual opção escolhera. “Oh, imbecil, a opção nossa é a 2. Agora, saia com seu cão fantasma.”
Dante soltou um suspiro, e tentou pela última vez mudar a escolha feita pelos bandidos. “Tem certeza que quer que eu saia? Meu aspecto não me parece nada humano nesse momento. O meu cachorro também está furioso aqui. Se eu sair, volto a dizer, vocês verão algo que nunca viram e que fará vocês tremerem de horror… “
“Saia logo, e sem gracinhas. E nem pense em portar alguma arma…”
O suspense e o ar de mistério criado por meu irmão me deixou apavorado. Algo me dizia que ele não estava blefando. Eu, novamente obrigado a ficar deitado, espiava pela pequena abertura inferior do quarto do Dante. Então ele deu como definitiva a opção 2.
“Tudo bem, vou sair. Primeiro o meu cão, depois eu. Já estamos indo.” Minha mãe se dirigiu ao filho preferido. “Não faça besteira, meu filho. Eles não são ruins, apenas querem dinheiro. Venha em paz.”
“Estou indo mamãe.”
Mantive-me com olhar fixo na parte inferior da porta. Juro, vi que o Dante apagou a luz antes de abrir a porta. Com o quarto escuro eu pude ver um feixe de luz parecido com a cor verde irradiando lá dentro. Provavelmente só eu vi, pois a luz não chegou a ultrapassar a batente da porta. Dante girou a chave, e relembrou os bandidos de que o cão sairia primeiro, depois ele. Meu irmão completou as duas voltas da chave na fechadura. Abriu parcialmente a porta e ordenou ao seu cão. “Vai e me espere.” A única coisa que todo mundo pode visualizar foi a luz verde irradiando. Os três bandidos ao escutarem o Dante pedindo para o cão sair, e, não vendo nenhum animal porta afora, voltaram a dar risada do “cara mais maluco que já assaltaram.”
“Que luz verde é essa? Já disse, sem gracinha, moleque idiota.”
Enquanto o chefe dos bandidos falava com meu irmão, que ainda se encontrava dentro do quarto, prestes a sair, o pavor me tomou de assalto. Senti no rosto a lambida do seu cão fantasma. Era o Pantera . Meu irmão não era louco, o cão espectral existia. Tremi.
“Não é nada demais, apenas o brilho dos meus olhos. Eu avisei que vocês veriam o inaudito, acaso escolhessem a opção 2. Estou indo.”
Dante então surgiu por trás da porta, e, observado por todos, adentrou a sala. Seus olhos nada parecido com os de um humano, irradiavam uma luz verde de tom indescritível, e não sei ao certo dizer se eram verdes, mas lembravam a cor da maioria dos vegetais. “Que brincadeira é essa, rapaz! Desligue esse feixe de luz.”
Dante caminhou próximo a mim, estendeu sua mão gesticulando estar acariciando a cabeça do seu cão fantasma. Naquele momento, os bandidos já não conseguiam rir como a pouco. O medo apossou a mente doentia deles. “Desligue essa porra de brinquedo ou vou meter bala em você!”
“Como lhe expliquei, não é um brinquedo, são meus olhos. Sabe, Bernardo… “
“Porra, moleque, você realmente é de arrepiar, seu maluco filho da puta! Como sabe o meu nome?”
“Enquanto estive no quarto negociando a melhor saída dessa confusão toda criada por você e seus comparsas, pude fazer uma rápida investigação sobre a sua vida criminosa, cuja ficha é vasta e apresenta a incrível marca de todo assalto por você praticado culminar em latrocínio. Você é um cara muito mal…”
“Você sabe demais, moleque!”
O bandido mirou a arma para o Dante, engatilhou-a. Dante o desafiou: “Atire”. O cara atirou sem dó, perfurando o ombro esquerdo do meu irmão. Assustadoramente, o feixe de luz verde se alterou para uma cor semelhante ao sol crepuscular. Os três bandidos ficaram em choque, e por um momento achei que perderam a capacidade de movimento. E então Dante fez um breve esclarecimento, e o sangue escorria por seu braço e em breve atingiria o antebraço, depois a mão e, por fim, pingaria no taco de madeira da sala. Lembrei das gotas da chuva.
“Deixe eu falar a última coisa, depois podem me matar, desde que não machuquem minha família. Pois bem, senhores. Por longos oito anos venho estudando a natureza dos elementos. Talvez algum de vocês já devem ter ouvido falar sobre a antiga ciência da Alquimia. Na alquimia e na ciência hermética há um princípio básico, o da compensação. Para que eu trasmute um elemento em outro, há um custo proporcional. Uma coisa compensa a outra. É assim que o equilíbrio do universo se mantém desde bilhões de anos, no tempo zero, da singularidade. Observem bem o que irá acontecer. Veja o meu sangue brotando do ferimento que a sua arma me causou. O sangue já se aproxima do meu pulso. Daqui alguns segundos já terá alcançado a ponta dos meus dedos até atingirem o corpo imaterial do meu cão fantasma. Olhem, vejam, senhores, a lei da compensação se manifestando diante de seus olhos!”.
Gotas grandes de sangue pingaram da mão do Dante, contudo, não atingiram o chão da sala, pois numa altura do tamanho de um cão elas atingiam algo invisível. Era o cão fantasma que, com o sangue absorvido por sua estrutura espectral, passou a ganhar materialidade visível ao humano. Pantera surgia não com sua cor original, mas vermelho como a luz solar dos olhos de seu dono. Em poucos segundos o cão teve restabelecida a sua estrutura material, com uma compleição fantástica, irradiando o vigoroso feixe de luz da cor do crepúsculo. Os dentes afiados e mortais do cão brilhavam como a prata. Os bandidos viram o cão surgir do nada, imóveis como se hipnotizados. Gritaram de pavor. Então sobreveio o desfecho fatal.
“Seu demônio dos infernos! Morra, maluco! “, esbravejou o tal de Bernando. Os três apontaram as suas armas para Dante, mas antes de as posicionarem no ponto exato do alvo, o feixe de luz dos olhos do meu irmão atingiu um grau de claridade insuportável para todos dentro daquela sala. Os bandidos ficaram atordoados. A lâmpada da sala explodiu, e logo em seguida, a tela da TV. E até a luz do poste da rua, cuja claridade atingia parcialmente parte da sala, foi destruída por alguma força emanada por Dante. No escuro, tiros foram disparados. Eu, meu irmão Márcio e minha mãe fomos arrastados para um canto da sala, enquanto ouvíamos o latido infernal do cão. Os três homens atiravam a esmo e gritavam desesperadamente a cada mordida destruidora que recebiam em seus corpos dilacerados. Era possível ouvir os dentes da fera atingindo seus frágeis ossos.
Durante a sangrenta confusão, Dante então voltou a falar com o assassino Bernardo. Foi apavorante para os criminosos, mas nos encheu de um sentimento de vingança. O caçula narrou um acontecimento: “Numa noite, na capital, um homem do interior, pai de quatro filhos, caminhava por uma avenida, após um dia cansativo de vendas domiciliares. De repente, numa rua estreita e escura, homens o arrastaram e informaram ser assalto. A vítima disse que não tinha nada, além de alguns trocados. Então o líder do bando, com uma faca, matou cruelmente o pobre trabalhador. Aquele homem era o meu pai. E você quem o matou. Sim, Bernardo, não é mera coincidência o nosso encontro de hoje…”
Pantera mastigava o bandido, feroz, dilacerante. Gritos de horror se confundiram com o grito de desabafo daquele outrora menino tímido que vivia em sua caverna. Quem era meu irmão, pensei?
Aos poucos, não se ouvia mais tiro, e os gritos dos homens passaram para um tênue gemido, e do gemido para o mais profundo silêncio do fim existencial. O massacre chegara ao seu término, e eu pude ver o cachorro, agora dócil, lambendo as mãos do Dante, feliz ao ver toda a família salva. Então o meu irmão caçula, com os olhos reduzindo o brilho ofuscante, falou comigo. “Douglas, está tudo bem, não há mais perigo. Tire a mãe daqui. Não deixe ela ver os corpos dos bandidos. O Pantera fez um estrondoso estrago neles. Vai, chame a ambulância, estou morrendo.”
Joguei a minha mãe nos ombros, puxei o Márcio comigo e segui sentido cozinha. Os vizinhos ouviram os tiros e quando eu me encontrava fora da sala, vi que a viatura da polícia estacionara em frete de casa. Deixei minha mãe e o Márcio na cozinha e corri pedir socorro. “Chamem a ambulância, chamem a ambulância. Meus irmãos estão feridos.
“ Um policial usou o rádio da viatura e acionou o SAMU. O outro me perguntou quantos bandidos estavam dentro da casa. “Três, mas todos morreram.”
A ambulância enfim chegou, e ao mesmo tempo que ela, o padre Nelson, desesperado. “O que aconteceu, meu filho? Cadê a sua mãe? E seus irmãos? E o Dante? Meu Deus!”
Dante foi socorrido, carregado pela maca, e não aparentava estar tão mal. Seus olhos agora era de um humano. Quando ele passou por mim e pelo padre, pediu aos socorristas um minuto, e algo me antecipara que aquela seria a última vez que eu veria meu amado irmão caçula em vida. E essas foram suas palavras deitado na maca, as quais também foram dirigidas pelo desesperado padre Nelson.
“Douglas, você foi muito valente. Tenho muito orgulho de você. Não se esqueça, eu sou aquela gota que inadvertidamente se lança do telhado e se projeta na unidade da poça d’água. Cuide da mamãe. Daqui por diante tudo que há no meu quarto passa a ser seu. Nelsão, pare com isso, meu amigo. A lei da compensação, tive que usá-la antes do previsto e, portanto, devo seguir as regras do universo, sob pena de assim não o fazendo, desequilibrar a dimensão mundana atual. Douglas, esconda o Pantera . E tão logo tudo se acalme, vá ao meu quarto. Na estante você encontrará uma caixinha preta. Há uns pequenos cristais dentro. Pegue o rubi e dê ao cachorro. Ele voltará para a sua dimensão. E assim estaremos juntos, muito provavelmente.”
“Você, você fez isso, meu amigo? Chegou a hora? Oh, o Mula não me contatou. Oh, meu Deus, justo agora!“
Dante deu o seu último recado ao Nelsão. “Ajude o Douglas a desintegrar o cachorro. E há algo que vou lhe deixar. Até.. “
Um dos socorristas, sorrindo, falou com o meu irmão: “Vamos, mestre.” A ambulância o levou. Estranhei aquele suspeito enfermeiro. Segundo consta, Dante chegou morto no hospital.
No outro dia fiz o que ele me pedira. Pantera engoliu a pedra rubi e se dissolveu diante dos meus olhos e do padre. “Isso é incrível!! Hehehe, você conseguiu, Dante, seu feiticeiro quântico de uma figa! Hehehe.”
Por um momento, achei que o padre havia pirado. Meu irmão deixara uma carta na caixinha preta, direcionada ao padre. Por fora, um bilhete pedia para que eu a lesse, tão logo o cão espectral fosse transportado pela pedrinha. “Nelsão, ele deixou essa carta, e pediu para que eu a lesse para o senhor.”
“Ah, sim, pois bem, leia! Vamos!”
Eu rasguei o envelope, o padre olhava para as alturas, então li uma mensagem extraordinária, cujo teor me arrastava necessariamente para aquela loucura toda.
“Olá, meu querido mestre, Padre Nelsão.
Sim, se meus cálculos baseados na Psico-História estão corretos, eu já devo ser considerado como morto na Terra, o Pantera já se desintegrou quanticamente e você está com meu irmão lendo esta carta. Estou além do horizonte conhecido, na sede da Fundação Enciclopédia. Provavelmente, nesse exato segundo que leem a carta são duas da tarde… Confirmem…”
Parei a leitura, e confirmei que eram duas da tarde, exatamente como previsto por Dante… O padre Nelson esmurrou o ar com uma feliz surpresa. Finalizei a leitura da inacreditável missiva.
“Acertei, né? Hehehe. Dante nunca erra, Nelsão! Brincadeira. Vamos lá. Em 2065 a Terra será atacada por uma civilização extraterrestre brutal, vinda de outras dimensões. Nesse momento, todos os “cerebrais” estão calculando o ponto exato, horário e forças bélicas que eles utilizarão contra o nosso planeta. Para uma defesa inabalável da humanidade, precisamos chegar no ponto exato em que os invasores saltarão. Nesse ponto todas as armas da Terra deverão ser posicionadas. Não podem deixar nave alguma deles avançar o espaço do Planeta Terra. Marquem bem, já agendei meu salto quântico de volta à Terra para o ano 2064. Até lá, já devo ter o ponto do salto dos extraterrestres invasores. Quero que meu irmão estude Astrofísica. Prepare-o, Nelsão. Já falou com Roma? Mexa seus pauzinhos. Talvez você, meu amigo Padre, já não esteja mais na Terra quando eu der o salto. Se tiver, será um prazer abraçá-lo. Agora, mãos à massa. Até o futuro. Douglas, seja a gota, se lance para o todo.”
Terminei a carta e comecei a chorar. O padre Nelson me repreendeu.
“Não seja tolo, agora você sabe de tudo, inclusive que seu irmão está vivo. Você é três anos mais velho que ele. Vai precisar se comportar como um guerreiro daqui por diante. Vamos, semana que vem embarcamos para a Europa!”
No caminho de volta para casa, eu e o Nelsão combinamos toda a trama de nossas atitudes no decorrer do velório do Dante, as quais teriam que ser condizentes com o evento triste. O padre não me explicou como o corpo do Dante estava no caixão.
“Você vai estudar muito até poder compreender, rapazinho. Fique tranquilo.”
Minha mãe estava em choque. Eu lhe disse que o Dante fez tudo aquilo para nos salvar, pois o que ele falara na sala sobre a crueldade dos criminosos, em especial do Bernardo e o assassinato do nosso pai, confirmou-se pelos policiais.
“Vocês deram muita sorte, até então ninguém saiu com vida quando se depararam com o cruel Bernardo. Seu filho morreu, mas agiu como um herói. Ele usou alguma arma? Inexplicável aqueles rasgos…”
Demos o nosso melhor para que o velório do Dante fosse tão belo quanto ele nos fora em “vida”. Padre Nelson, acompanhado do bispo, fizeram uma emocionante cerimônia lúgubre. Jamais esquecerei as palavras de uma verdade inconfessável para quem exerce a função eclesiástica, ditas pelo emocionado Nelsão. Era tudo forjado, mas o conteúdo me pareceu bem verdadeiro.
“Confesso, meus senhores e minhas senhoras, que antes de conhecer o jovem Dante, há tempos a fé abandonara a minha alma. Permanecia como padre mecanicamente, pois já com quase setenta anos, pouco podia fazer além de liderar uma paróquia. Mas quando eu me sentei diante desse saudoso jovem e ouvi as coisas que ele me disse e experimentei as sensações de êxtase inenarrável pelo simples fato de estar próximo dele… Ah, quando esse ser de intelectualidade colossal me colocou no chão com seus argumentos absurdamente indestrutível, porém reveladoras, sim, bebi novamente a água rejuvenescedora da fé. Nele contemplei o divino, o mistério. E qual o objetivo dos livros senão elevar o espírito do ser? Nunca, em momento algum, duvidei do seu laboratório espectro-multidimensional. Muito menos de seu cão invisível. E por que não? ‘O todo é mente. O universo é mental’. Vá em paz, meu amigo, cumprir os seus intrincados propósitos.”
***
“Eu sou uma gota e eu me jogo dentro de você.” Toda vez que me recordo dessas palavras do Dante, e das coisas extraordinárias que ele fez, meu coração explode e vejo o mundo e tudo que há nele, ao nosso redor, ser um grande oceano. “Você está em mim, Dante, e eu em você. Sinta-me como o templo da sua infinita impessoalidade. Quando eu deixar de ser, só assim de fato haverei de ser.” Eu passava horas fitando o céu e suas estrelas. Eu estudei tudo sobre o cosmos, sobre a sua química, e as partículas. Cumpri o desejo do meu irmão caçula. Em que estrela ele agora estaria se debruçando no conhecimento?
E eis que o ano de 2064 chegou, e eu me encontrava no local cujas coordenadas o padre Nelson me passara, um mês antes de sua morte, em 2063, ano em que fizera 101 anos. Por pouco ele não abraçou o seu amigo estelar.
Eu já era um astrofísico reconhecido, o mais genial do mundo, e vi, no horizonte, uma fissura plasmática se desenvolver… Dante rasgara, com uma tecnologia ainda distante da humanidade, o tecido do espaço-tempo.
“Olá, Douglas, como vai?”
Junto dele, o cão espectral abanava o seu rabo.
“Quem é a essa moça linda? Minha sobrinha?”
“Sim. Marina, cumprimente o seu tio.”
“Está ouvindo música? Vem cá, deixa eu ouvir também.”
Minha filha tirou um dos lados do seu fone, e encaixou na orelha direita do tio.
“Oh, não acredito! Douglas, essa música… é da nossa adolescência. Que delícia! Quanta saudade de todos vocês! Você tem um bom gosto, menina! Incrível! Hehehe”
Marina sorria do jeito confuso do tio, o que vinha das estrelas. Passada a sua vergonha, pediu um presente ao Dante.
“Tio, posso ficar com seu quarto… eu amo livros…mas meu pai não deixa eu entrar muito no laboratório…”
Dante enxugou uma lágrima que descia pela bochecha. Meu coração se agitou ao rever o seu pálido rosto, e a sua costumeira aura brilhante. Na minha memória vieram os momentos mais críticos que ele passara, antes de se transformar no humano que rompe as intrincadas leis da física. Nossa amada mãe não desistiu dele, e antes dos livros, do conhecimento, e da sua amizade com o padre Nelson, foi o amor maternal o primeiro degrau de sua imensurável escalada para algo infinitamente grande, o universo, que coube nas poucas dezenas de metros do seu quarto. Por outro lado, ao me lembrar do feroz combate na noite do assalto, e de como ficaram os corpos dos bandidos, um espanto me gela os nervos diante de um paradoxo extraordinário, que me nego a querer entender.
“Douglas, você fez isso? Seu malvado! Minha linda e futura vencedora do Nobel. Hum… Eu não deveria antecipar essas coisas… Bom, enfim, a partir de agora o quarto é todo seu!”
“Que história é essa do Prêmio Nobel?”, perguntei surpreso.
“Nada não. Nada.”
“Tio Dante, você sabia que minha mãe foi sua professora? Era me disse que você era um aluno difícil?”
Meu irmão me olhou com o sorriso nos lábios, surpreso com aquelas coincidências felizes do destino. Talvez escondesse uma pontada de ciúme.
“Clarice! Douglas, você agarrou a minha ilustre orientadora? Ah! Seu malandro, me conte tudo. Vamos, Vamos!”
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