A Revolta dos Sapos

Na cidade de Gavião Peixoto havia um famosa Rua do Sapo (ainda há, mas os sapos que por lá passeiam não são tantos como outrora). Na época de besouros, outubro em diante, a “sapaiada” saia ao banquete farto, e aquele logradouro público, a rua adjacente ao Córrego Horebe, forrava-se de cururus, parecendo o formigueiro humano da 25 de Março paulistana, mas daqueles bichinhos anuros, anfíbios, saltitantes, com suas ágeis e elásticas línguas caçadoras. Rãs e pererecas também se viam, mas em menor número. Esses tipos de anfíbios gostam mais do ambiente aquífero, são, portanto, um tanto tímidos, cautelosos com as cousas do bicho homem. Rã tem pavor de frigideira! E a perereca, essa é tão astuta, esperta e bonita, que seu nome é utilizado como apelido para uma fruta por vezes proibida, que vive oculta no maior do tempo, desde quando Adão mordeu uma outra fruta, a maçã no paraíso, e então nasceu a vergonha. Mas a história do cronista é outra, vai-se pois!

Numa noite de farta chuva de besouros de toda espécie, no alto do festejo gastronômico da sapaiada, por motivo ignorado pelo cronista, iniciou-se uma tumultuosa briga de sapos. Destemidos, a balbúrdia dos bichinhos se deu às claras, sem pudor, sob as luzes dos postes, como se sapos também não tivessem preocupações com a reputação existencial. Foi uma peleja coletiva, de uma barulheira imensa, parecia até uma revolução, a revolução dos sapos, e a fúria vinha na forma estrondosa de coaxos assustadores. Os homens e as mulheres que viram a confusão dos anfíbios sem caudas, quem ouviu aquele monte de sapo saltando e esperneando ao mesmo tempo um ao outro, nunca mais esqueceu a Revolta dos Cururus.

Naquela noite nenhum humano ousou sair de casa (os moradores da rua), com exceção de um corajoso, o qual logo se saberá de como se sucedeu. Espiavam da janela a guerra, toda a balbúrdia! Alguns, abraçado à Bíblia Sagrada, declaravam o fim dos tempos, e esperavam ouvir as trombetas romperem no céu. E, de fato, na rua uma guerra descomunal era travada, e os coaxos  ganharam ecos de gritos de horror humano.

Na linha de frente do campo de batalha anfíbio, estavam as sapas, as mais feministas delas. As sapas são fisicamente maiores que os machos, e a sua língua elástica atinge distância incríveis. Já os machos, são lentos e achatados, por isso, naquela guerra mais apanharam do que bateram, quando não morreram. Uma das milhares daquelas sapas se destacava naquela multidão em batalha.  Pelos testemunhos colhidos pelo cronista, a bicha chegava a ter 2 quilos, uns 25 centímetros de tamanho, possuindo pernas muito grandes, e a língua mortal, esticada no máximo, atingia adversários a até dois metros de lonjura. Dava saltos de meio metro para mais. Seu imenso peito emitia uma luz, com certeza de vagalumes recentemente caçados, ainda capazes de produzir bioluminescência.

Fato curioso, digno de nota, é que aquela sapa cegou o olho direito de um senhor que morava na famosa rua. Sim, é o homem corajoso mencionado acima pelo cronista. Em um dos saltos de longa distância a sapa teria “mijado” nos olhos do destemido idoso. Na verdade, não é bem mijo, xixi para os sensíveis, mas um veneno que sai de duas glândulas que ficam atrás dos seus olhos. Sapo é bicho engenhoso. Mas não foi um ato gratuito e covarde da sapa. Longe dela a pusilanimidade humana: o único homem na rua chutou indistintamente alguns sapos, sem quaisquer tendências a cor de bandeiras ou dos supostos partidos da nação cururu. Sobrou para todos. Se fosse possível classificar a violência do idoso, por esforço criativo, seria exato dizer sapofobia, batracofobia para os sabidos. Legítima defesa ou excludente de ilicitude, jamais cabe em tais explosões de fúria humana contra os bichos.

A batalha dos sapos estava no auge da ferocidade, a família do pobre e atrevido idoso tentou contê-lo, contudo, lutou contra todos da casa e, decidido, disse que “daria um basta naquela injusta guerra, pois havia besouro pra todos aqueles sapos malucos”. Saiu portão afora, chutando os bichos, golpeou centenas, mas a sapa gigante o atacou implacavelmente. Depois de anos, o idoso ostentando um tapa no olho direito, disse ao cronista que se arrependera daquilo. “Eu tava embriagado, perdi a cabeça diante daquele mar de sapos. E só tinha eu de humano na rua. Foi por medo!” Relatou sobre a sapa gigante, “a rainha do Horebe”, dissera o velho, e em seus olhos o terror da lembrança contorcia suas córneas.

O certo é que depois daquela batalha nunca mais a sapa rainha deu as caras. Deve ter se isolado para sempre no brejo do Córrego Horebe, camuflada por debaixo do capim, ou numa toca. Durante anos a cantoria dos sapos manteve um tom melancólico. Havia poesia naquele canto, embora lembrasse um arrependimento coletivo, em notas de uma marcha fúnebre, por honra e jus das almas dos que foram mortos naquela imprevista guerra dos cururus.

Quais foram os motivos que levaram os sapos a se revoltarem. Seria uma disputa de território do brejo? Disputavam uma das margens do Córrego?  O senhor que ficou cego de um olho, deu o seu palpite: “nós acabamos com a mata ciliar do Córrego, jogamos lixo e esgoto nele. Os sapos estavam apenas se defendendo, ou buscando o fim do sofrimento, matando um ao outro, pois lhes é impossível o suicídio. Eu perdoo a sapa mãe!”

Depois daquele dia o cronista deixou de ter medo de sapo e passei a respeitá-los. Eles não são feios, são incríveis!

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