O Caminhante

Nunca fui uma pessoa supersticiosa, pelo contrário, durante um longo tempo da minha vida encampei um ateísmo engajado e ruidoso.  Meu ativismo me levou a desprezar e humilhar amigos, familiares ou qualquer outra pessoa com visão religiosa ou simpatizante da metafísica. Bastava um simples colóquio de mesa de bar e eu destilava minha ilusória superioridade racionalista, esbanjando grosseria e intolerância para cima das pessoas. Mas quem pode com as peças que a vida nos prega?

Um dia, ou melhor dizendo, em uma noite de embriaguez acabei passando por uma sinistra situação,   cuja natureza terrível e perigosa só me dei conta quando já era tarde demais, e se sobrevivi à sucessão daqueles apavorantes acontecimentos, quando andei de mãos dadas com a morte, reputo minha vida à proteção de algum dedicado anjo da guarda. Ao leitor que tiver tempo e curiosidade para ler esse relato, dou toda a autoridade para me julgar e se, ao fim de tudo, considerar-me lunático, não deixo de lhe dar razão.

Era o ano de 2008, nessa época morei um tempo em Piracicaba,  por razões profissionais. Eu era então o encarregado da construtora Memphis, e a minha equipe de colaboradores executava a construção de um grande shopping center na localidade. Havia serviço para no mínimo dois anos. Na época, eu acabara de passar por um doloroso processo de divórcio, o que aumentou a  minha acidez social e ceticismo.

 Numa sexta-feira, dia 13, data de insondáveis insinuações, por volta das dez da noite, fui violentamente enxotado das dependências de um boteco, após eu, em total estado de embriaguez, ter ofendido, com palavras rasteiras, o sentimento religioso dos frequentadores do estabelecimento. Fui literalmente jogado na sarjeta, minha orelha esquerda fervia e zumbia, resultado de um certeiro tabefe desferido por um grandalhão. O melhor a fazer era dar o fora dali, pois eu, com a cara colada no chão áspero da calçada, ouvia a conversa agitada e raivosa daqueles beberrões dentro do bar. Diziam entre eles que eu apanhara pouco, merecia mais. E eles estavam certos,  exagerei na dose.

Levantei-me da calçada e caminhei até o meu carro, apertei o botão do alarme, a porta se destravou, abri-a, e, quando metade do meu corpo já se encontrava dentro do veículo, uma mulher de roupa rasgada e suja, cujo aspecto imundo exalava um forte odor de miasma, em nítido contraste com seus olhos azuis vivazes, abordou-me com palavras gentis de cumprimento. Seu cheiro horrível ficou marcado em minha memória.

Por algum motivo inexplicável, o aspecto moribundo e misterioso da mulher, o seu olhar lânguido e calmo, trouxe-me uma inesperada paz, a ponto de eu não agir com a minha rotineira petulância. Sua voz serena inspirava respeito, e meu coração amoleceu trazendo-me sentimento de compaixão. Ignorando completamente a natureza extraordinária daquele encontro, antecipei-me ao seu provável pedido de esmola. Minha generosidade foi extrema, ofereci-lhe cem reais.

  A maltrapilha recusou receber a cédula azul de expressivo valor. Fiz uma cara de surpreso, e  dos lábios dela escapou um breve sorriso. Em segundos, delineou em seu rosto o aspecto de quem é atingido por uma iminente preocupação. Com a voz perturbada, a mulher deu-me uma espécie de conselho: “Cuidado com a ponte. Oculte em seu coração e no seu rosto o que seus olhos enxergar. Não desça do carro de forma alguma”. Despediu-se e seguiu  sua andança noturna, descendo rumo ao fundo do bairro, pela rua escura. Enquanto eu a observava caminhando até desaparecer na penumbra, deduzi se tratar de uma mulher alienada pelas pancadas da vida. A madrugada só estava começando.

Dei partida no carro, liguei os faróis, e antes que eu desse o fora daquela rua avistei um rapaz encostado no muro ao lado do boteco. Usava uma blusa com gorro, e não pude ver o seu rosto. Fiquei espantado por  não tê-lo visto durante a presença da mulher. A compleição física da pessoa do muro não lembrava nenhum daqueles homens do bar, era, portanto, um desconhecido e sua atitude furtiva me deixou receoso.

Decerto, pensei, esse forasteiro observou toda a minha conversa com a maltrapilha. Talvez fossem parceiros golpistas. Frustrei-me com minha patética ingenuidade, e nada me tirava a ideia de ter sido enganado por uma dupla de malandros. Mas então me lembrei da recusa da mulher pela gorda esmola ofertada. Sobreveio-me a confusão de pensamentos e a impotência mental diante daquelas misteriosas pessoas. Eu precisava mais do que nunca beber. Senti um alívio por ainda ter a nota de cem na carteira.

Rodei com meu carro até umas duas da manhã de bar em bar, bebendo e conversando tolices, chateando um ou outro com minha exótica visão de mundo. Nada me contentava, e a ideia de ir numa zona de meretrício surgiu como uma festejada e acertada decisão. Como um bom homem familiarizado com noitadas perniciosas, mesmo não conhecendo a região, sabia que as boates cheias de belas e acessíveis acompanhantes quase sempre se localizam às margens das rodovias. Peguei a pista sentido Campinas esperançoso em me deparar com os letreiros brilhantes dos inferninhos.

Em verdade, quando me dei conta eu estava novamente passando defronte ao bar onde me deparei com a mulher misteriosa. Minha delirante bebedeira me fez crer que eu trafegava todo aquele tempo pela rodovia quando na realidade eu atravessei reiteradas vezes uma longa e espaçosa avenida entre bairros, na área de expansão urbana de Piracicaba. Circulei pela urbe como um cão correndo atrás do seu próprio rabo. Dei um soco no vidro, e o resultado foi um pequeno trinco na lateral esquerda do para-brisa. Peguei o acesso mais próximo da rodovia, dessa vez acertando o trajeto.

Avançando pela rodovia sentido Campinas, avistei alguém caminhando pelo acostamento da estrada. Movido pela insensatez etílica, parei o carro no acostamento e ofereci carona ao caminhante. Era um rapaz, moreno, aspecto forte, carregando uma mochila tipo escolar nas costas. Surpreso com minha atitude, após pronunciar palavras desconexas, agradeceu a gentileza e entrou no carro, acomodando sua mochila no banco traseiro. O movimento da bolsa gerou ruído de plástico, conforme pude ouvir e identificar com exatidão. De cara, iniciei uma efusiva conversa com o estranho. Falei do meu desejo de visitar uma casa de meretrício, ele aparentou ter ficado empolgado com a ideia e, dizendo conhecer as boates da região, conduziu-me ao destino pretendido.

O rapaz, cujo o nome me disse ser Felício, era bom de conversa, e notei se tratar de um grande observador. Ouvia-me atentamente, olhar indecifrável, sem sugestão. Quando falava estendia seu relato por um longo período, e quase sempre o que dizia era confuso e fora de contexto. Falou até chegarmos no bordel.  Quando entramos na boate e nos acomodamos numa mesa, notei que o seu modo loquaz se arrefecera drasticamente. Naquele instante, eu já estava mais próximo da sobriedade do que da embriaguez, de modo que meu espírito contemplativo percebeu a nítida perturbação corporal do caminhante.

Captei suas inopinadas contorções faciais, e flagrei um leve tremor de suas mãos, ao ver o copo de cerveja chacoalhar entre seus dedos, quando o levava a boca. Reputei aqueles sinais como efeito de sua eventual timidez em locais lascivos. Felício me dissera no carro que não havia bebido nada até o momento em que lhe dei carona. Logo, meia dúzia de copos de cerveja afastaria o pudor do rapaz, assim pensei.

Após meia hora e os esperados seis copos de cerveja, não ocorreu o que eu previra. Errei feio, pois o canhestro comportamento dele piorou. Desejo e repulsa se alternavam naquele homem singular. Busquei entender a dinâmica da sua variação psicossomática, os gatilhos que o levava de um extremo a outro. Um pouco de observação e deduzi ter desvendado o mecanismo inconsciente do pêndulo humano que se movia diante de mim. Longe, as garotas provocavam faíscas nos olhos do rapaz, e por vezes vi os pelos eriçando-se em seus braços. Porém, quando as garotas se aproximavam, seu comportamento se alterava.  Abaixava a cabeça,  mantendo a visão no chão. Em seguida, uma tremedeira crescente lhe acometia, e os eventuais movimentos das mãos perdiam razoáveis níveis de coordenação motora.

A todo tempo uma garota ficou sentada ao meu lado, seu nome era Tânia, e por várias vezes ela me cochichou suas impressões sobre o jeito estranho do meu “amigo”. Chegou a me dizer: “Acho que ele é gay. Homens tímidos demoram pra se soltar, mas nada que umas brejas e doses não resolva. Agora, esse aí, já bebeu todas…Ele tá assustando as minhas colegas”.

Minha acompanhante estava certa quanto aos seus receios, e o comportamento estranho do Felício me prendeu a atenção. Minha costumeira arrogância por pouco não me fez repreendê-lo publicamente, cogitei até em fazê-lo vítima de chacota das garotas. Entretanto, uma vaga preocupação me obrigou ter cautela; havia algo de neurótico nos gestos do rapaz. Dei um breque na bebida, agi com indiferença em relação aos seus modos,  sem deixar de saborear a instigante experiência de observar uma possível personalidade portadora de seríssimos traumas psicológicos.

            O que aquele homem seria capaz de fazer? Quais temores e que traumas ele carregava dentro de si? E se ele transasse com uma daquelas belas garotas? Era apenas uma forte timidez? Assim borbulhavam as minhas divagações, levando a minha curiosidade ao seu clímax.  Desejando aprofundar minhas observações,  ofereci ao Felício pagar um programa com alguma garota de sua escolha. Ele refutou minha oferta de imediato, e vi em seus olhos uma fúria digna daqueles psicopatas retratados no cinema. Retirou-se da mesa, dirigindo-se ao banheiro, com as mãos sobre as têmporas.

        Permaneceu no toalete durante dez minutos, e sua demora causou-me contrariedade e receio. Não tive qualquer intenção de magoá-lo, muito embora eu já previra aquela sua raivosa reação. Culpei-me por fazer algo desnecessário e maldoso. Pensei em ir ao banheiro ver se estava tudo bem com ele, contudo, Felício retornou tão logo eu decidira buscá-lo. Sua fisionomia refletia calma, uma clara tranquilidade que me levou a desconfiar simulação. O horário avançara, já vinha a aurora, cinco horas da madrugada. O tempo passou e junto com ele a minha embriaguez e a curiosidade pelo jeito peculiar do Felício.

            Decidi retornar para Piracicaba, e o rapaz me disse que iria comigo até a rodoviária da cidade de meu destino. Paguei a conta, e ouvi no balcão as moças cochichando sobre o Felício. Umas delas, lembrei-me, chegou a sentar no colo dele na mesa, mas o doentio desconforto produzido no caminhante apavorou a rapariga, que se afastou assombrada.

    Dei um dinheiro para a Tânia, a moça que permanecera todo aquele tempo comigo na mesa, disse-lhe adeus e me retirei do salão, acompanhado do Felício, cuja fisionomia estava nada amistosa. As garotas riram todas ao mesmo tempo, e Felício achou que era dele. Sussurrou impropérios como “vagabundas”, chegou a ameaçar se dirigir até o balcão onde elas travavam um alegre bate-papo. Lancei-lhe um olhar de quem diz “deixa disso” e, por sorte, o rapaz contrariado desistiu do confronto, e veio caminhando logo atrás de mim; pisava fundo nas pedras da área do estacionamento.

        Ambos dentro do carro, coloquei a chave na ignição, estiquei minha coluna para trás, joguei os braços para cima, bocejei e, sentindo-me aliviado, comentei com o caminhante sobre a madrugada peculiar que tivemos. Percebi que ele se agitava, e de repente reabriu a porta do veículo. Pediu-me para que eu o aguardasse por alguns minutos, pois ia usar o banheiro da Boate. Sugeri  para que ele urinasse ali no estacionamento, contudo, alegou-me necessidade outra e se dirigiu ao  salão.

          Passaram-se cinco minutos e nada desse cara retornar. A porta larga de duas folhas esfumada de blindex da boate ficava bem atrás do carro, virei-me para espiar a entrada do salão e um cheiro desconfortável no banco traseiro, exalado do interior da mochila do Felício, invadiu o meu nariz. Um cheiro nojento que me gerou a controversa impressão de Déjà vu. Retornei a minha posição anterior no banco e esperei mais um tempo.

              Felício permanecia no interior da boate. Talvez estivesse dando uma cagada daquelas. Esse pensamento me enojou. Espiei novamente o salão. Nem sinal do homem. O cheiro vindo da suspeita mochila passou a me incomodar, gerando-me, ainda, indomável curiosidade de conhecer o que o exalava, o conteúdo da bolsa. Brotou-me, concomitantemente, uma leve desconfiança, afinal, que coisa poderia, a um homem, ser dele digno de posse, apresentar tamanho a caber numa bolsa, e que fede morbidamente? Aquela coceira humana, fruto da dificuldade de convivermos passivamente com o mistério, aguçara a minha curiosidade sobremodo. Só havia um remédio para o meu ocasional desassossego, explorar o objeto de atenção, descobri-lo.

         Observei mais uma vez a porta do salão, e nada. Então inclinei meu corpo para trás do veículo para mexer na bolsa. Abri o seu zíper e o miasma, agora mais forte, invadiu enfaticamente minhas narinas. Quase tive um refluxo estomacal, entretanto, não abandonei o meu propósito. Enfiei a mão esquerda dentro da mochila e apalpei o embrulho, tateando-o. Ouvi o ruído de plástico, como eu já esperava. Não consegui só com os toques identificar o conteúdo misterioso e flácido da bolsa, O fedor me era familiar, tive um estalo mental. Na verdade, eu me negava a acreditar naquela súbita hipótese. Caiu sobre mim um pavor e a minha coluna gelou. Quase desisti, mas minhas mãos agiram automaticamente.

Puxei o plástico para fora da mochila, acendi a luz interna do carro, e o que eu imaginara ser, e que desejei muito estar equivocado, confirmou-se assombrosamente. Por pouco não infartei, e fui obrigado a morder o meu antebraço para sufocar um grito de horror. Meu corpo tremeu, uma tremedeira só experimentada pelos presos castigados no implacável frio da Sibéria. Era uma cabeça humana embrulhada no plástico. Sim, mil vezes sim, era a cabeça daquela mulher maltrapilha com a qual eu tive um encontro de circunstância extraordinária. Por isso aquele cheiro repulsivo me era familiar.

Vi-me diante do sobrenatural, não me chegava outra explicação. A corrente de fatos e circunstâncias peculiares pelas quais experimentei naquela noite não pode ser esclarecida pela lupa da racionalidade. Sim, é verdade que psicopatas existem e que a minha imprudente atitude de, em plena madrugada, dar carona a um estranho caminhando por uma autoestrada, jogou-me para o centro de uma história hedionda e sangrenta. Confesso que dei sopa para a loucura, contudo, como explicar pela lógica a minha conversa com a mulher? Como a cabeça dela coincidentemente foi parar no banco traseiro do meu carro? E o que dizer do conselho enigmático que ela me deu horas antes e que naquele momento, no estacionamento da boate, as suas palavras, antes aparentemente desconexas, passaram a ter coerência? Minhas céticas convicções, outrora indubitáveis, desapareceram diante dos olhos azuis da cabeça decepada. Eu fiquei em choque, aterrorizado. Meu mundo perdeu o chão.

   Por alguma força além das minhas possibilidades de entendimento, talvez a intrincada “vontade de potência” referida por Nietzsche, consegui repor a cabeça de volta na bolsa e fechar o zip. Este, emperrou no plástico antes de concluir o fechamento total. Dei outra espiada na porta do salão e agradeci por não ver o Felício. Posicionei a mão para girar a chave e dar partida no carro, porém, que desespero, meus dedos agarraram o vazio. A chave não estava na ignição. Procurei-a nos bolsos. Sem sucesso. O assassino a levara furtivamente.

Pensei em abandonar o carro e sair correndo, contudo, na terrível e decisiva hora ouvi um tumulto dentro da boate e de repente o Felício surgiu porta afora, correndo em direção ao carro. O alarme foi acionado, vi ele apertando o chaveiro eletrônico. O ruído ensurdecedor da buzina tresloucada trouxe ainda mais horror para o cenário diabólico. O assassino entrou e me devolveu a chave com uma normalidade assustadora. Dei partida e saí jogando pedra brita para cima.

Movido pelo instinto de sobrevivência (entenda como quiser), fui capaz de esconder meus temores, e se em minha mente o terror da situação me torturava, este estado de espírito não se refletia em meu semblante. O estranho algoz sorria, sinal de que nao identificara a minha perturbação. Imediatamente as palavras enigmáticas da mulher começaram a ganhar traços de inteligibilidade contextual. “Cuidado com a ponte. Oculte em seu coração e no seu rosto o que seus olhos enxergar. Não desça do carro de forma alguma”. Para mim, outrora um cético exasperado, aquelas palavras foram ditas por influência de forças desconhecidas da natureza. Olhei de relance para o passageiro e vi que ele trajava uma blusa com gorro. Sim! Era ele quem se encontrava encostado no muro próximo ao bar! Tudo se esclarecia. Tracei mentalmente como poderia ter ocorrido a morte da maltrapilha.

Logo após eu conversar com a mulher, Felício, que espreitava-a do muro, surpreendeu sua vitima na declividade escura da rua, decapitando-a como um monstro mitológico. Horas se passaram enquanto eu trafegava a esmo pelas avenidas da cidade, até que acessei a rodovia e, não muito longe da rua escura do famigerado bar, dei carona ao assassino.

 Aquela pobre mulher, numa notável atividade paranormal de premonição, demonstrou-me, ainda que tenha se utilizado de palavras misteriosas, conhecer previamente a natureza horrenda dos fatos futuros que eu enfrentaria. Alertou-me a esconder minhas sensações diante de uma iminente situação perigosa. A única peça que não encaixava era o fato de ela, ao deter o poder da premonição, não ter evitado a sua morte cruel. Na ocasião, recordei de uma teoria sobre a impossibilidade de pessoas clarividentes verem seus próprios futuros.

Sentindo-me protegido por um anjo da guarda, mantive a fisionomia calma e conversei naturalmente com o feminicida. Perguntei-lhe sobre a confusão dentro da boate. Ele sorriu insanamente, e só então percebi que ele segurava na mão direita um estilhaço grande de vidro, com respingo vermelho de sangue. Felício baixou a janela da porta e jogou o material cortante na estrada. Passou a relatar a briga na boate, afirmando ter cortado o rosto da garota que sentara no colo dele horas antes. Seus olhos brilhavam de excitação e, por absurdo que pareça, espiei a altura de seu órgão genital. O tecido da sua calça apresentava um círculo úmido. Vendo-o em êxtase e com o corpo arrepiado, e lembrando seu comportamento oscilante e doentio, logo descartei ser urina a causa da mancha líquida em sua calça.

Eu não aguentava mais a sensação de pavor, estar ao lado dele me sufocava. Cogitei em pular fora do carro, ou mesmo partir para a luta corporal, entretanto, considerei o fato de ele ser um psicopata homicida, e seu aspecto físico era imensamente mais robusto que o meu. Eu não teria chances. Continuei encenando, na esperança de que em algum momento surgiria uma viatura policial ou, no limite, nada me aconteceria até que chegássemos na rodoviária de Piracicaba.

Sem outra alternativa, retomei a nossa conversa, ocultando minha perturbação. Dirigi-lhe um falso elogio pela sua honrosa atitude na boate. Vituperei as garotas a fim de agradar aquele monstro. Eu esperava ganhar a confiança do Felício e alcancei o meu objetivo, ao menos por um bom tempo daquela viagem que parecia não ter fim.

Vi-me obrigado a ouvir suas técnicas diabólicas de machucar pessoas, em especial mulheres. A gargalhada dele no decorrer de sua narração, com descrições ricas dos detalhes sangrentos e aterrorizantes, causava-me calafrios. Afirmou que ainda não colocara em prática seus desejos mais horrendos, dentre eles, esquartejar mulheres, referindo-se a instrumentos cortantes, dilacerantes da carne humana, comuns nas sessões de torturas das imemoriais e frias masmorras do medievo.

Eu me orgulhava de ele sequer suspeitar do meu conhecimento sobre o conteúdo tétrico da sua bolsa. Minha eficiente atividade teatral me tranquilizou,  eu quem controlava a situação. Entrementes, aconteceu um incidente durante a viagem que me desestabilizou, porém, não passou de um susto. Como não me assustar? Felício virou-se no banco, mexeu na bolsa e retornou empunhando uma faca de açougueiro. Ao ver meus olhos esbugalhados, acalmou-me dizendo ser uma precaução para o caso dos seguranças do bordel estarem vindo em perseguição. Colocou a faca na lateral do banco e nela não mexeu durante o resto da viagem. Ufa, pensei na hora, foi por pouco.

Durante todo o percurso não nos deparamos com viatura policial, nem nos dois postos de pedágio que passei. Eu pensei em pedir socorro para o cobrador, contudo, Felício sabia do sistema sem-parar instalado no meu carro, pois eu usei quando íamos ao bordel. Se eu conduzisse pela faixa de algum dos postos de cobrança do pedágio certamente ele suspeitaria de mim.

A lembrança da faca me impediu de fazer a manobra arriscada, e assim a minha situação tenebrosa perdurou ainda por um bom tempo, aumentando a chance de eu perder o controle; pessoas insanas como o Felício possuem estado de espíritos extremamente oscilantes, como relatei. Era provável que a qualquer momento a simpatia dele por mim poderia se transformar em ódio.

Concentrei meus pensamentos em decifrar inteiramente a fala da mulher decapitada. As palavras “ponte” e a frase “não descer do carro” giravam com a força de um furacão. Não demorou muito para todo enigma sair por detrás da neblina, porém, a resposta não chegou pelo meu esforço mental, mas pelo andar dos novos acontecimentos macabros que se sucederam.

Felício já me chamava de amigo, falava euforicamente da sua vida difícil, e da infância sofrida, cheia de episódios de violência paternal, e suas lembranças nada afetuosas do pai traziam nas entrelinhas uma clara mensagem de eventuais abusos sexuais. Eu continuei encenando compreensão e aprovação da sua insana visão de vida, até que alcancei o trecho da rodovia em que há uma ponte sobre o Rio Piracicaba.

O misógino feminicida continuava me enojando com suas descrições de métodos de torturar mulheres, e só parou de vomitar crueldades quando avistou a placa informando a proximidade da ponte do Rio Piracicaba. Silenciou-se e, expressando ansiedade,  espiou  a sua bolsa no banco traseiro. Estendeu o seu braço esquerdo em minha direção, pousou sua mão em meu ombro, e me fez um leve afago. Então, pediu-me para desacelerar e  estacionar no meio da ponte. Fiz exatamente o que ele me pedira.

Felício desceu do carro, dessa vez não pegou a chave do contato. Informou-me que não demoraria, fechando a porta. Na sequência, abriu a porta traseira, pegou com cuidado a mochila e, mantendo a porta aberta,  dirigiu-se até o peitoral da ponte, distante uns dez metros do veículo. Pensei em fugir dali imediatamente, porém, algo me fez permanecer um pouco mais. Com movimentos furtivos, peguei o meu celular, queria filmá-lo jogando a cabeça no rio, no entanto, o aparelho estava com a bateria descarregada.

O assassino iniciou o movimento para lançar a mochila na correnteza, mas desistiu no meio da ação. Fiquei alerta, pois ele passou a observar a bolsa, suspeitava de algo. Nesse instante eu lembrei de ter fechado parcialmente o zíper da bolsa, antes completamente lacrada. Eu fora imprudente, e Felício descobriu tudo. Ele me olhou com fúria nos olhos, entretanto, ao ver que eu também o observava, simulou tranquilidade. Era Felício quem passou a  encenar.

Gritou de onde estava para eu descer, queria me mostrar algo interessante no leito do rio, assim justificou. Sua intenção óbvia era me persuadir a sair do carro, meu único meio de escapar de suas mãos assassinas.  “Venha, venha, senão vai perder, não vai ver!” Agia como uma criança travessa e hiperativa.  Permaneci no veículo contrariando o seu pedido. Felício percebeu que sua estratégia falhara. Sua fisionomia foi apossada de uma tempestade de pensamentos furiosos. Chegamos, enfim, naquele ponto crítico do tudo ou nada.

O assassino, ainda mantendo a mesma distância do carro, passou a me observar como um caçador implacável. Ele não tinha mais motivos para esconder seus horrendos propósitos, o nosso joguinho de encenação se desfez. Furioso, Felício soltou um grito desumano, cujo estrondo repercutiu por toda a mata ciliar. Tive a impressão de ver os galhos das árvores, até então inertes, agitarem-se, acompanhado do farfalhar das folhas. Senti um frio metálico na coluna cervical, hormônios explodiram em meu peito. Dei partida no veículo, Felício reagiu rápido, disparando sua corrida numa velocidade desumana, animalesca, terrível.

Minha sorte foi que a arrancada brusca do automóvel acabou fechando a porta traseira antes que ele alcançasse a lateral do veículo. Houve um estrondo quando suas mãos se chocaram com a parte de cima do porta malas. Suas unhas, ou algum instrumento cortante por ele utilizado (não sei ao certo, e a perícia não se mostrou conclusiva a respeito), deixaram expressivas fendas , como observei depois.

Afundei o pé no acelerador e só voltei a espiar pelo retrovisor ao me afastar uns oitocentos metros do assassino, sentindo-me seguro. O que observei no espelho me deixou ainda mais apavorado: um humanoide de movimentos bestiais, correndo igual a um quadrúpede, galopando em minha perseguição.

Atravessei a ponte inteira, e a distância entre mim e o Felício aumentara consideravelmente, de modo que já lhe era impossível  me alcançar, a despeito  dele continuar me perseguindo com inexplicável velocidade. Chorei de alívio, entretanto, a deliciosa sensação de tranquilidade, há tanto tempo ausente, durou pouco: o para-brisa começou a rachar daquele pequeno trinco que causei com o soco até o centro do vidro dianteiro, estilhaçando-se completamente.

Cacos de vidro atingiram os meus olhos, e tive a visão comprometida. Perdi o controle do carro, saí da pista, invadi o acostamento e capotei numa ribanceira, a cerca de dois mil metros da ponte. Fiquei preso na lataria  da porta e o cinto de segurança restringiu meus movimentos. Houve uma centena de segundos de silêncio, contudo, meus ouvidos, aguçados pelo medo, captaram o som de trotes selvagens no asfalto. Era o Felício, correndo e gritando como um monstro do inferno, no meu encalço. As árvores voltaram a se agitar assombrosamente, e me desesperei tentando me livrar das ferragens. Fiz um movimento brusco das pernas e desloquei o joelho esquerdo. Foi a primeira vez na minha vida adulta que pedi ajuda divina, sem nomear uma divindade específica.

O silêncio retornara, o homem besta deixou de gritar, com esforço girei meu rosto sentido asfalto, avistando o topo do barranco, momento em que vi Felício na borda do acostamento da rodovia, bem diante de mim. Observando-me, sorria como uma hiena, salivando com espumas raivosas nos cantos da boca. Iniciou a descida da ribanceira, lento e extasiado. Meus gritos de dor  e medo aumentaram as expressões faciais  manifestadoras de seus desejos doentios. Ele se aproximava, como um predador que deseja comer viva a sua ingênua presa. Poucos metros, agora alguns passos, separavam eu da brutal morte. O desespero que me abateu é indescritível. Eu já sentia o seu hálito.

Fechei meus olhos, na minha mente surgiu a imagem daquela triste mulher decapitada, e a minha memória olfativa também fora acionada, reforçando a sensação de real presença espectral da morta. A mulher de olhos azuis vivazes sussurrou-me: “Você foi corajoso. Não é a sua hora, acalme-se”. Então ouvi veículos estacionarem no acostamento, ruído de portas abrindo, e depois vozes simultâneas de gente confusa e preocupada, no cume da ribanceira.

Alguns homens desceram o terreno íngreme, seus passos causaram o desprendimento de pedras do barranco, as quais rolaram até atingirem o meu veículo, com a posição de ponta-cabeça. Aqueles rapazes, creio que eram três, socorreram-me. Antes que eu desmaiasse, vi o Felício pela última vez,  bem ao meu lado. Intimidado pela inesperada presença daqueles homens, esgueirou-se pelo carro, e sem ser visto, abandonou o local, embrenhando-se mata adentro. Tentei avisar meus salvadores sobre o perigoso assassino, porém, estando no meu  limite físico, sucumbi ao desmaio. Acordei no hospital, fora de perigo.

       Passada a sonolência medicamentosa, e com a minha consciência restabelecida, acionei a autoridade policial, relatando o ocorrido, sem omitir qualquer detalhe, ainda que me fossem motivos de vergonha e reprovação social. Diante de tanta bizarrice, por pouco não me deram ouvido. Buscas foram realizadas nas proximidades da ponte, rio abaixo e rio acima, porém não encontraram o Felício, nem a cabeça da mulher. As câmeras de segurança da ponte não captaram imagem alguma dele. Naquele local escolhido pelo estranho as câmeras não atingiam. O famoso ponto cego conhecido pelos mais astutos criminosos, e muito provavelmente ele sabia exatamente a parte da ponte não alcançada pelas câmeras.

          A polícia, sem achar qualquer indício sobre os fatos por mim relatados, via-me com incredulidade, como um louco ou, no mínimo, alguém que teve uma noite alucinante de bebedeira. A desconfiança das autoridades se respaldava no fato de eu não saber informar em qual boate eu estive com o Felício naquela madrugada. Eu não me recordava mesmo, e o pior, paguei com dinheiro, impossibilitando identificar o estabelecimento pelo cartão de crédito.

         Mas nada como o tempo.

        Dois dias depois, eu ainda estava no hospital, a verdade deu as caras. Pescadores encontraram a mochila com a cabeça da mulher, a cerca de dois quilômetros da ponte, rio abaixo, enroscada numa rede de pesca. Na sequência, veio a confirmação do meu relato da agressão praticada por Felício  na garota da boate. As câmeras do estabelecimento também não captaram a imagem do assassino. Lembrei que naquela noite, na boate, fiz uma self com o celular, abraçado com o estranho companheiro. Surpreendentemente o seu rosto foi ocultado por um feixe de luz gerado defeituosamente pelo flash.

Finda a minha estada hospitalar, tendo durado uma semana, procurei saber sobre a mulher decapitada. De fato, ela foi assassinada na noite em que a vi na rua do bar. O momento da sua morte não teve uma hora exata cravada pela perícia técnica, entretanto, foi muito próximo de nosso misterioso encontro. A outra parte do seu corpo não foi localizada. Diante do laudo inconclusivo, a mulher pode tanto ter morrido antes ou depois de eu vê-la na rua escura. O leitor incrédulo concluirá que se eu a vi, logicamente ela morreu depois. Já o leitor que não descarta os mistérios do mundo, poderá dizer que eu falei com a alma dela.

O caminhante, de nome Felício, até os dias de hoje continua foragido. Tenho esperança de que um dia Felício, se não estiver morto, será capturado pela polícia, e pagará por seus crimes. Talvez o assassino revele como e em que momento matou a pobre mulher de olhos azuis, de modo a desvendar-me a natureza do encontro que tive com a mulher maltrapilha.

Inobstante isso, sinto-me protegido pelo meu anjo da guarda, cujos olhos azuis vivazes permanecem presentes e abertos em minha diária oração. Sem todo aquele mistério, que é a matéria primeva da fé, não sei se eu teria suportado os horrores por quais passei.

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