O Prefeito, o Governador e a Estação - Recicla Leitores

publicado em:22/03/20 1:49 AM por: Beto Oliveira Beto OliveiraContos

Havia um tempo d’então, antes mesmo de outrora, bem para lá de trás do cinquentenário, em que os políticos eram uma espécie de estrela de cinema nessa terra chamada Brasil, principalmente nas entranhas do continente, no seu interior.

                            O líder nato, homem de ação e que tinha (ou aparentava) ter posse de sacra filosofia, arrastava multidões por toda localidade que visitava, posto que era o “Governadô do Estado” ou outra excelência titular de alta posição, cuja lida cotidiana exige o latim aguçado, aquela dominância plena do vocábulo, a expressão correta e fluída, como se imitasse os romanos Cícero e Marco Aurélio. Os políticos daquela época, no dizer dos nostálgicos, “sequer tinham cheiro de humano; exalavam aquele eflúvio mítico de biblioteca”.

                            Naqueles tempos, o povo era mais ingênuo, a informação pouco que chegava, e os mais espertinhos partiam dessa para outra no cano de um trabuco. Tem época que inteligente é aquele que “sabe, mas finge que não sabe; ou o que não sabe mesmo” – em uma ou outra hipótese, vivem sem importunação das autoridades.

                            Do tempo d’então dá para contar muitos causos, das desgraças todas, do chumbo grosso e toda tragédia da divina comédia humana. Mas por hoje me chega à memória, de supetão, como bote de cobra esfomeada, uma história hilária e ao mesmo tempo triste, que envolve um Governador de Estado, que até ponte construiu em cidade sem rio, prometendo para o futuro levar o grande leito d’água para aquela localidade “de modo a enfeitar por debaixo da ponte!”. Diz a lenda que após concluir discurso, o Governador foi ovacionado pelo povo, mas um menino muito sabido e intrometido, lá do meio do povão, resolveu afrontar a autoridade do mandatário estadual. O Prefeito bem que tentou calar o moleque malcriado, mas o Governador, que nunca correra de debate, logo falou: “Não se intrometa, por favor! Deixa o menino desenroscar o que está engasgado na garganta. Pois pergunte, menino, pelo bem da democracia e para a sua aprendizagem!”. E o pequeno homem perguntou: “Me explica, doutor, como trará para cá um rio, se tem a lei da gravidade, elaborada pelo genial Isaac Newton?”. O Governador de chofre respondeu: “Não conheço o Isaac Newton, mas pode ter certeza, meu temperamento é igual ao de Napoleão. Para gente como nós, não existe o impossível! A partir de hoje, fica revogada a lei da gravidade e outras disposições em contrário!”.O povo aplaudiu até cansar as mãos, afinal, o político, além de tudo, se mostrou humilde professor. O menino gargalhava como louco, só ele ali talvez soubesse do absurdo dos argumentos.

                            Mas nossa história é outra, que envolve o tal Governador e um Prefeito dessas paragens. O que o Governador tinha de malandragem e de talento na conversa, conhecedor de grande parte do dicionário (para impressionar), o Prefeito tinha tudo ao avesso. Era honesto, mas ignorante, no sentido originário, do latim ignorans, que é “não saber”. Imagina, pois, quando esse singelo Prefeito se deparou, nas diversas situações, com uma conversa cheia de metáforas, figuras de linguagem e – o mais perigoso e insidioso de toda língua, um verdadeiro pântano para o descuidado com a gramática linguística – as palavras parônimas e homônimas, que são aquelas com grafias e sons semelhantes ou ainda exatamente iguais, com pronúncias diferentes, com significados diferentes; um nevoeiro de símbolos que pega a gente no desprevenido. Pois imagine só com o pouco letrado Prefeito, quanto perigo atravessou nessa senda de incertezas semânticas. Veja que confusão foi, e que prejuízo deu o não entendimento correto da frase, da palavra, interpretada fora do contexto, sem qualquer subordinação com a lógica possível da realidade.

                            A cidade, comandada pelo Prefeito, seguia o padrão das pequenas urbes paulistas: uma economia praticamente agrária, com extensos plantios de café num remoto passado, depois laranjais que davam um colorido especial ao campo, e hoje quase toda fatia de terra tem por manto o verde viçoso da cana de açúcar. Esse é o cenário dessas bandas que gravitam no centro do Estado Paulista. O povo, trabalhador e ordeiro, surgia de toda região do mundo, se amalgamando com os que aqui já estavam.

                            Como grande parte da produção agrícola era, e ainda é, para exportação, o escoamento se dava pelo trem, com destino ao Porto de Santos, de modo que todas essas cidadezinhas tinham uma estação ferroviária, inclusive para transporte de passageiros. O ajuntamento das pessoas formando vilas se deu mesmo com a extensão da linha férrea, que, para nós, com as devidas proporções, é como o rio Nilo foi para o egípcio em termos de formação de cidades. A linha férrea paulista serpenteia seus trilhos por todo o mais distante rincão bandeirante, assim como o rio Nilo, grandioso, atravessa dez nações do continente africano.

                            Acompanhe com atenção a sucessão dos fatos e tente não sorrir ou gargalhar, porque a consequência da balbúrdia linguística, levada ao extremo pelo Prefeito, é mais motivo para chorar. De tão sem pé e sem cabeça, poderá alguém concluir: “De quando em quando, a realidade supera a ficção!”.

                            O Governador do Estado agendou uma visita à cidade. Os políticos locais ficaram em polvorosa. Ate hoje é costume ardiloso, nos dias que antecedem essas visitas do Líder Maior do Estado ou de eleições, o Prefeito, que deixa a cidade abandonada por anos, de repente expedir ordens de serviços, tais como poda de árvores, pintura com cal das guias e sarjetas, operação tapa buraco etc. Contrata palco para os inesquecíveis discursos em prol da democracia, traz parquinho para as crianças, distribui algodão doce e sorvete. E não é que o velho truque de ilusão de ótica funciona? Mata dois coelhos com uma paulada só: o povo fica calmo como se tivesse ingerido suco de maracujá; o Governador, se sentindo lisonjeado, tece acalentados elogios ao Prefeito, pelo zelo exemplar com que cuida da cidade, com que cuida “do seu povo”.

                            Na cidade do mencionado alcaide havia uma linda estação ferroviária, a maior dentre as da região, só perdendo para a da cidade grande, mas, em termos arquitetônicos, era uma obra de arte. Gente entendida dizia haver colunas barrocas, vitrais magníficos, sem contar toda a dramaticidade humana da história de encontros e desencontros, de quem chegava e de quem partia, de quem simplesmente esperava encomenda, uma carta, retorno de parente ou pessoa amada. Quanta alegria, quanta tristeza, vivenciaram as paredes dessas estações!

                            Enfim, a cidade ficou toda bonitinha para recepcionar o Doutor Governador, que vinha chegando acompanhado de seus asseclas. A elite local fez carreata com seus Landau Galaxie e Maverick V8. O povão ia a pé, outros de bicicleta Monark. A carreata findou na Praça Central, o palco montado para a autoridade discursar. Antes, porém, os Deputados e o próprio Governador atravessaram o meio da multidão, e o que se via era pegação de criança no colo e o consagrado beijo na testa, beijos de mão, abraços, tapa nas costas, até choro de emoção e fogos de artifício. Depois de toda a encenação, o momento alto da festa cívica, os longos e tediosos discursos.

                            Findados as alocuções, sucedidas de aplausos e agradecimentos, o povo feliz retornou para seus lares; o barulho se transformou em surruruído. O Governador então chamou o Prefeito e pediu para que o levasse para conhecer o prédio da estação ferroviária, desativada, mas ainda magnânima e imponente. O Governador, quando chegou à estação, se emocionou, ficou maravilhado pelos laivos arquitetônicos. Procurou saber quem a projetara, no entanto, ninguém soube responder. Ele abriu o coração e contou um pouco da história de sua família, vinda da Itália, que aportou em Santos e fez viagem de trem interior afora para assumir lotes de terras doadas pelo governo. Fizeram riqueza e fortuna. O sentimento cresceu, os olhos marejaram. O Prefeito, humilde, abraçou o Governador e lhe disse: “Fica assim não, meu doutor. Gostou do prédio antigo?”. O Governador enxugou o rosto com o lenço e respondeu: “Sr. Prefeito, inestimável companheiro de luta, vou providenciar o mais urgente possível o tombamento deste prédio”. O alcaide ouviu, mas nada comentou, apenas pensou em fazer uma surpresa ao Governador, já no outro dia. E o Governador seguiu viagem de volta para a capital.

                            O Prefeito acordou no dia seguinte todo animado. Foi direto para a prefeitura, fez o inesperado, o equívoco maior de sua vida, traído pela língua portuguesa. Ligou para o secretário de obras e deu a fatídica ordem de serviço: “O desejo do Governador é o tombamento do prédio velho da estação de trem. Até chorou. Vamos providenciar, pegue as máquinas e mande tombar tudo, depois limpe o terreno. Lá vamos construir um campo de futebol. Tenho certeza de que o Governador libera verba para arquibancada, grade, banheiros e iluminação. Mãos na massa!”.

                            No final da tarde, já não existia mais a estação, o serviço fora concluído conforme solicitação do chefe do executivo local. O Prefeito fez diligência in loco, ficou satisfeito e resolveu ligar imediatamente ao Governador para dar a feliz notícia do tombamento do velho prédio: “Sr. Governador, uma gigante satisfação falar novamente com Vossa Excelência. Não precisa se preocupar com o tombamento da estação ferroviária, eu mesmo tomei as providências. Os operadores de máquina acabaram de concluir o serviço, está tudo tombado, terreno limpo, até pensei em construir um campo de futebol para incentivar o esporte nessa molecada. O que acha da ideia?”

                            Do outro lado da linha, não houve nada senão um silêncio mortal, um desejo de matar…

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A última modificação foi feita em:setembro 13th, 2021 as 3:30 pm


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Nascido no município de Gavião Peixoto, inteiror de São Paulo, no ano de 1977. É advogado, e recentemente iniciou sua caminhada pela escrita criativa, tendo contos publicados em antologias: O Morro do Diabo, na obra Vozes da Terra, Editora Publiquei On-line. O Retorno do Saci, na antologia Quando a Lenda Ganha Vida, Editora Sinna. Dentre seus autores preferidos, destacam-se Machado de Assis, Guimarães Rosa, Edgar Allan Poe, Philip K. Dick é Lygia Fagundes Telles.