O Trágico Amor em Nova Paulicéia - Recicla Leitores
Em uma noite de data incerta, os gritos de imensa dor do jovem russo Ivan Smirnov ecoaram por todo o território de Nova Paulicéia, causando uma revoada de curiangos na mata do hoje conhecido Morro do Bergoc, localizado do lado esquerdo de quem trafega sentido Gavião Peixoto-Nova Europa.
Muito provavelmente o ano do ocorrido está compreendido entre 1907 e 1920 ou um pouco além; não me faltou esforço e compromisso, mas não consegui maiores informações. Minha narrativa é derivada do relato de um velho boiadeiro que conheci no bar instalado na outrora Estação Ferroviária da localidade. “O jovem foi castrado pelo próprio pai, que jogou os testículos numa nascente d’água que existe no meio daquela mata. Tudo porque ele amava a mais bela flor da região!” E continuou: “Eu era criança quando minha mãe me contou essa história. Aquele homem sanguinário sumiu no mundo, foragido!”.
O velho boiadeiro aparentava ter mais de noventa anos, e não é de se duvidar que tivesse até mais idade. Como nasci em Gavião Peixoto e nunca o tinha visto antes, o indaguei:
— O senhor é de onde? Nunca o vi por aqui.
Ele coçou a barba rala pelo tempo, virou o copo de pinga num só gole, fez cara de rabugento e iniciou o breve resumo de sua vida:
— Nasci nessas bandas, sou de um tempo antigo, onde boi de arribada se pegava na unha. Quarenta, cinquenta dias tocando a boiada rumo aos cafundós desse Brasil gigante! Há cinquenta anos não voltava aqui. A febre amarela levou quase toda a minha família naquela época.
Sua história me despertou uma curiosidade imensurável, algo me dizia haver um mistério surpreendente no destino infeliz do jovem castrado; as circunstâncias obscuras, o suspense que nos agita a alma. Perguntei ao velho boiadeiro mais detalhes sobre o fato cruel ocorrido, sobre o pai do jovem castrado. Ele, agitado, posicionando os olhos para cima da linha do horizonte, voltados para a esquerda, laçou suas lembranças saltitantes e falou:
— Minha mãe tinha medo daquele russo de olhos azuis crassos. Chego a arrepiar, a sentir calafrios só de me lembrar da feição de assombro de minha mãe ao contar tal tragédia. Que demônio carrega um homem que capa o próprio filho? Desgraçado! — E concluiu, com a voz embaçada de medo: — O diabo, guarde bem isso, é tão farsante que anda com a Bíblia debaixo do braço, para seduzir essa gente de superstições tenazes!
Passado algum tempo, encostou uma caminhonete Hilux e o velho se levantou, despediu-se de mim:
— Jovem, foi um prazer! Meu bisneto chegou, vou-me embora. Deus te abençoe. E cuidado com aquela mata, ela é assombrada.
Antes que ele subisse na caminhonete, fiz uma última pergunta:
— Meu senhor, estou muito curioso com essa história toda. Qual fim teve o jovem castrado?
Ele olhou para o céu e respondeu:
— A tragédia maior: se matou no meio daquela mata. A sua pretendida, uma linda moça italiana de nome Francisca, prima de minha saudosa mãe, enlouqueceu. Aquele pai endemoniado, não esqueço seu nome, Igor! Que a profundeza do inferno o queime eternamente! — E seguiu adiante.
As poucas informações dadas pelo velho boiadeiro foram um substancial alimento para aguçar a minha imaginação e se abrir em minha mente um vasto leque de possibilidades sobre os motivos que levaram aquele pai a arrancar os testículos do próprio filho. As circunstâncias obscuras do fato sombrio me perseguiram por muitos anos. O motivo verdadeiro da violência praticada, creio, jamais iremos saber, conquanto podemos chegar bem próximo da verdade. A busca pela verdade foi-me uma jornada digna desse humilde relato, caro leitor.
Eu estava certo de que não veria mais aquele velho boiadeiro e, por uma imprudência minha, sequer perguntei o seu nome e onde morava, nem prestei atenção na placa do veículo. Só sabia ser um lugar distante de Nova Paulicéia, pois ouvi o bisneto lhe dizendo que a viagem de retorno seria de dois dias. Essas histórias fantásticas nos pegam no desprevenido da vida. É como assombração, aparece sem qualquer antecipação. O fato é que nunca mais vi aquele senhor misterioso. Seria ele sobrenatural? Ora, há tanta gente real que passa em nossa vida como verdadeiras assombrações.
Volvendo à nossa história, paguei a conta do bar e retornei para minha casa com a cabeça agitada, tanto pela narrativa trágica do desafortunado Ivan como pelas cervejas ingeridas em exagero. Nem meu estado de ressaca arrefeceu minha curiosidade, corri imediatamente para o computador com o objetivo de pesquisar a História do Município de Gavião Peixoto, cuja sede inicial era a então Villa de Nova Paulicéia.
Tudo começou com a construção da ferrovia, por volta de 1906, quando se iniciaram as obras. Duas estações ferroviárias foram construídas e entregues em 1908, sendo uma em Nova Paulicéia e outra no núcleo de Gavião Peixoto. As estações existem até hoje e, fato indigesto, embora sejam o motivo de formação do município, ambos os prédios antigos não foram objeto de proteção histórico-cultural até o presente momento. Triste a cidade que não preserva sua história.
Pelas minhas pesquisas, descobri que no núcleo de Nova Paulicéia viveram algumas famílias russas, porém foram dizimadas por uma epidemia de febre amarela. Segundo os textos pesquisados, os russos vieram por conta do triunfo da Revolução Marxista Russa, o Império Czarista ruiu. O mundo nunca mais seria o mesmo a partir daquele fato histórico. Era a primeira experiência de um Estado Comunista. Uma coisa é certa, o velho boiadeiro não mentiu quando falou em famílias russas por aqui no começo do século XX.
Os textos sobre Gavião Peixoto, muito concisos e genéricos, eram um pouco confusos, pois davam a entender que os russos vieram na época da construção da ferrovia, cujo início das obras se deu em 1906. Entretanto, os pontos não se ligavam, considerando que a Revolução Russa só ocorreu uma década depois, em 1917. Essas incongruências de datas e informações não me habilitam a fixar uma data exata do dia da trágica castração do jovem Ivan, daí porque puxei uma hipotética régua cronológica entre 1907 e 1920, um corte no tempo com grande margem de erro. No entanto, nosso erro de datação não merece críticas contumazes por parte do leitor, pela fragilidade de nossas fontes históricas. Peço, portanto, as escusas devidas aos leitores perfeccionistas.
Como disse alhures, não me faltou esforço para tentar fechar essa equação. A história de Ivan, o castrado, me obcecou. Para se ter uma ideia, viajei até a capital São Paulo para ir ao Memorial do Imigrante, onde consultei arquivos sobre a imigração russa no Brasil. Li teses de doutorado sobre o assunto. Pude levantar notícias bem esclarecedoras sobre duas ondas imigratórias ocorridas nas primeiras décadas do século XX.
A primeira leva imigratória ocorreu entre 1904 e 1914. Os russos vindos nessa época eram compostos de camponeses, trabalhadores rurais fugindo da vida dura na Rússia, seduzidos pela propaganda imigratória do governo brasileiro, que custeava inclusive a viagem. A segunda onda imigratória se deu após a Revolução Marxista de 1917, composta da elite russa, então membros do Exército Branco que defendiam o Czar, além de profissionais liberais.
Essas informações me inculcaram ainda mais, pois não se mostrava claro e razoável para mim que os russos da segunda onda imigratória, a maioria profissionais liberais, viessem para colonizar os núcleos rurais originados do projeto de colonização da Sesmaria Cambuy, Nova Paulicéia e Gavião Peixoto. Em minhas pesquisas, eu li que tais russos foram para os grandes centros do Brasil; mas também eu não pude deixar de observar uma variável, pois era provável haver uma, ainda que pequena, diversidade social nessas ondas imigratórias, embora essa minha observação fosse cingida de incerteza.
Merece menção o fato de eu ter, antes da minha visita ao Museu do Imigrante na capital, ido ao suposto local da castração de Ivan. O velho boiadeiro falou de uma nascente d’água no meio da mata. Com essa pista, convidei um amigo morador do hoje Bairro de Nova Paulicéia para me acompanhar mata adentro. Uma pequena mata, mas sinistra, como veremos.
Em um sábado à tarde lá fomos nós, como dois caçadores de aventura. Meu amigo levava consigo um facão Guarani, segundo ele, “lendária marca de facão. Abre picada no mato, corta sucuri no meio, mata até sombração!”. Coube a mim carregar o garrafão de água, exigência dele, pois “uma vez dentro da mata, tudo pode acontecer”. Era um exagero, a dimensão da mata é pequena, uma reserva rural.
Entramos por trás de uma casa em ruínas existente no pé da subida do morro do Bergoc. Fomos circundando a mata até achar os vestígios dos trilhos da ferrovia, o qual identificamos pelas pedras brita 4, utilizadas como uma espécie de preenchimento dos espaços entre os dormentes. Dali, adentramos a mata, e após uns trinta minutos caminhando debaixo das árvores, encontramos um fio de água estreito. Seguimos por seu leito, que se desenvolvia num sulco que ia gradualmente aumentando, com barranco revestido naturalmente de pedras. A água era cristalina. Sobre nossas cabeças, uma dezena de almas-de-gato, o pássaro mais estranho e bonito que já vi. Seu rabo comprido é de uma elegância invejável, sua cor marrom tem um tom de mistério, a camuflagem perfeita.
Paramos ali e fizemos um lanche. Até então meu amigo não sabia da história. Quando contei, ele ficou apavorado, olhava para as almas-de-gato e sentia mau pressentimento daquele lugar. Quis abandonar a mata imediatamente, no entanto, eu o acalmei. Disse que todo esforço seria em vão se não inspecionássemos o local antes de irmos embora. Ele se recobrou, respirou profundamente e aquiesceu com a cabeça. “Você é um grande filho da puta!”, me disse sorrindo, mas ainda assustado.
Vasculhamos pedra por pedra, cada árvore, todos os buracos, o solo, tudo num raio de cinquenta metros do leito do fio d’água, à procura de algum vestígio, alguma marca, alguma carta (a maioria dos suicidas deixam uma carta), papel, enfim, tudo que pudesse fazer parte, ser mais uma peça do nosso quebra-cabeça. Próximo à nascente, a única coisa encontrada e digna de atenção foram pedaços de corda podres, aparentava ser bem antiga, seria a utilizada por Ivan quando se enforcou? Havia uma chance, mas o uso de corda em matas é comum para a caça, seja na montagem de armadilhas ou para amarrar o animal abatido, facilitando seu carregamento. Tudo era hipótese.
Encerrada a inspeção, decidimos partir. Enquanto caminhávamos sentido estrada, houve uma revoada de pássaros que chamou nossa atenção para uma árvore bem grande, de tronco grosso. Ficava um pouco além do terreno há pouco inspecionado. Meu amigo foi até ela e, de repente, sumiu atrás do tronco. Fiquei com medo, mas logo ele me chamou.
— Venha aqui! Venha ver!
Aproximei-me e ele apontou para uma parte do tronco onde estava escrito, provavelmente com ponta de faca, os dizeres: “БЕЛЫЕ ГУМЫ” e “Матфей 19:12/18:8-9”. Aquela inscrição soava para nós como um enigma, um criptograma egípcio, algo indecifrável que ultrapassava nossa capacidade cognitiva. Tiramos algumas fotos e partimos de vez. Jurei a mim mesmo nunca mais voltar naquele lugar, palco de “sabe-se-lá-o-que” que só viria a descobrir muitos anos depois.
Meu amigo ficou muito assustado, aquele cenário atormentador e a história indefinida mexeram com seus nervos. Olhou em meus olhos e sentenciou:
— Não apareça tão cedo na minha frente, eu te mato!
Eu respeitei a sua resolução, e minha intuição me dizia que ele me mataria mesmo. Só voltei a falar com ele depois de sete anos, quando cheguei à uma conclusão plausível sobre o ocorrido com o jovem Ivan, o castrado.
Continuei minha jornada sozinho, e nas horas vagas eu empreendia minhas pesquisas tentando garimpar, na vagueza de informações, mais peças do meu quebra-cabeça.
Fui ao cemitério de Nova Paulicéia à procura das sepulturas do suicida Ivan e da sua então pretendida Francisca, mas não encontrei nada. Também não encontrei nenhuma sepultura com nomes de pessoas russas. Na ala mais antiga do cemitério havia muitos túmulos sem identificação, poderia ser uma daquelas, mas a incerteza dominou novamente. Ouvi uma conversa de que os mortos pela febre amarela não foram enterrados no cemitério existente, mas em um terreno próximo, onde teria sido o primeiro campo-santo.
Pesquisei nos Cartórios de Registro Civil informações de certidões de óbitos, mas nada foi encontrado. Não havia registro algum, meu quebra-cabeça virou um inextricável labirinto. A única pista disponível eram aquelas inscrições no tronco da árvore: “БЕЛЫЕ ГУМЫ” e “Матфей 19:12/18:8-9”. Sentindo-me impotente, comecei a questionar a veracidade da história do velho boiadeiro, afinal, gente viajada, estradeira, do mundo, tem essa mania de contar “causos”, e não titubeiam em inventar histórias sombrias, assustadoras.
Eu sempre achei esse povo meio “Hitchcock”. Mas, ao mesmo tempo, eu me recordava de que o velho boiadeiro me contara tudo de uma forma emotiva, seu rosto sinalizava realismo. Recobrava a minha convicção. Algo me dizia na cachola: “não desista”. Seria a alma de Ivan falando comigo? Eu arrepiava!
Durante muito tempo eu me debrucei sobre a inscrição hermética do tronco da árvore. Passava horas cogitando sua decodificação, no entanto, nada surgia de novidade. O tempo foi passando e eu acabei fraquejando, já não tratava aquilo mais com seriedade, negligenciei as pesquisas por três anos seguidos, embora aquele trágico fato nunca abandonasse os espaços de minha mente. Era só eu passar pela estrada e já olhava para aquela mata, e, por devaneio, parecia que ela também olhava para mim. Fazia quatro anos, a conversa com o velho boiadeiro. Sinceramente, eu nem mais sabia se ele de fato existia ou se tudo não passara de um sonho maluco ou um delírio produzido pelo álcool. Comecei até a suspeitar de minha sanidade mental.
Mas as coisas despertam quando menos se espera. Numa tarde de domingo, após o almoço, eu estava manejando meu smartphone e acessei a galeria de fotos antigas na nuvem One Drive. A primeira foto que apareceu na tela foi justamente a da inscrição do tronco da árvore, pois a pesquisa estava programada com o filtro “fotos mais acessadas”. Acordei da hibernação sherlockiana e voltei a analisar aquele texto por horas. Minha mãe, passando por trás de mim, parou e perguntou:
— O que tanto você olha vidrado nessa tela? Vai ficar cego!
Mostrei-lhe o enigma e disse que há anos eu tentava decifrá-lo. Você não vai acreditar, caro leitor, no absurdo: minha mãe o decifrou em segundos!
— Filho querido, você não prestava atenção nas aulas de catecismo, não é? Esses números aí são referências a capítulos e versículos bíblicos. Quanto aos textos, me parece ser hebreu, grego, sei lá. Vá falar com o padre, ele conhece muitas línguas — disse ela, com toda a calma do mundo, e saiu para continuar seus afazeres domésticos.
Eu fiquei sem fôlego por alguns segundos, a descoberta de minha mãe me entusiasmou demais. Gritei:
— Porra, mãe! Você é fantástica, volta aqui! Como acho esses capítulos e versículos na Bíblia?
Ela, lá do quintal, estendendo roupa no varal, berrou:
— Sem saber de qual livro bíblico se trata, como Gênesis, Eclesiastes ou Salmos, fica impossível. Vá falar com o padre para ele traduzir.
Meu espírito recebeu com muito júbilo aquela descoberta. No fundo, eu sentia que, se eu alcançasse a verdade daquela tragédia, ao terminar de montar o quebra-cabeça, de alguma forma a alma do jovem Ivan descansaria em paz, fazendo justiça ao seu cândido amor por Francisca. Meu amigo, à época da inspeção na mata, chegou a imaginar que o pai castrou o filho por ele ter cometido alguma perversão contra a moça da redondeza, como um estupro. Eu descartei tal versão. Para mim, o jovem Ivan foi vítima de uma violência atroz e sombria. O tempo me deu razão, como veremos.
A menção bíblica no tronco da árvore me fez relembrar uma frase dita pelo velho boiadeiro, com os olhos esbugalhados, muito provavelmente se referindo ao senhor Igor, pai do jovem castrado: “O diabo, guarde bem isso, é tão farsante que anda com a Bíblia debaixo do braço (…)”. Essa intricada conexão das peças me levou a crer, com fervor ainda maior, que o motivo da tragédia não foi um castigo, como imaginara meu amigo, mas algo sinistro, sobejamente macabro.
Ouvi o conselho de minha mãe e fui à casa paroquial procurar pelo padre, porém, fui informado que havia dois meses que a paróquia estava sem um padre definitivo. Minha mãe, católica, ignorava tal vacância no sacerdócio local, pois não era uma “beata praticante”, só ia à missa em ocasiões especiais, batismo, casamento etc.
Mas não desanimei, agora eu tinha o mínimo de informações para reiniciar a investigação com um norte definido, e minha mãe passou a ser uma espécie de Watson nessa trama, o famoso auxiliar de Sherlock Holmes. Faltava descobrir em qual língua foram escritas as inscrições no tronco da árvore. Por dedução, supus se tratar da língua russa, afinal, os envolvidos eram russos. O óbvio ululante! Como diria algum erudito, “o essencial é invisível aos olhos”.
Bendito o pai moderno dos burros, o Sr. Google! Sentei-me em frente ao meu computador e primeiramente pesquisei sobre o alfabeto russo. Que caracteres esquisitos! Após baixar uma imagem do alfabeto completo, imprimi-o para iniciarmos as comparações entre as letras com as inscrições, tentando traduzir as palavras. De início já constatamos que se tratava mesmo da língua russa, pois os caracteres, as letras, batiam. Levamos uma hora traduzirmos os textos. O primeiro, “БЕЛЫЕ ГУМЫ”, significa “Pombas Brancas”. O segundo, “Матфей”, significa “Mateus”. As ferramentas de tradução foram fundamentais, para fazer justiça à tecnologia.
Minha mãe correu buscar a Bíblia e logo voltou, lendo-a no Livro de Mateus, capítulo 19, versículo 12, mas só para ela. Levantou os olhos para mim, com a mão na testa, demonstrando surpresa e espanto, e me disse:
— Segure-se para não cair, vou ler para você.
E começou a ler o texto bíblico:
“Alguns são eunucos porque nasceram assim; outros foram feitos assim pelos homens; outros ainda se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem puder aceitar isso, aceite.”
Folheou a Bíblia algumas páginas para trás e leu a segunda menção, Mateus, cap. 18:8-9:
“Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.”
Quando minha mãe encerrou a leitura, quase tive uma vertigem. Eunuco é um indivíduo cujo pênis ou testículos foram removidos. Os textos bíblicos faziam menção há mutilações físicas, o que apontava um nexo direto com a tragédia ocorrida com o jovem Ivan. O quebra-cabeça estava bem próximo de ser completado. Para mim, estava claro que o pano de fundo da tragédia era uma interpretação demoníaca dos textos bíblicos. Teria sido alguma espécie de ritual?
Por coincidência do destino, depois de iniciada a minha longa investigação, peguei paixão pela leitura. Consumia livros como se consome arroz e feijão, lia todo tipo de texto, desde poesia à filosofia, mas o que mais me atraía eram os textos herméticos, de mistério, romances psicológicos. Um mês após minha cara mãe e eu traduzirmos os textos, eu estava lendo o romance Os demônios, do russo Fiódor Dostoiévski, e não sei se por acaso ou por força providencial, o autor faz menção a uma antiga seita russa cristã, iniciada no século XVIII, que pregava a autocastração com base naqueles trechos bíblicos já citados.
A seita é chamada de Skopiétz, em russo, cujo significado é “castração”. Era considerada funesta, doentia, buscava através da autoflagelação a purificação da alma, levada a efeito em delírios religiosos. Os mais extremistas acreditavam que quando Jesus lavou os pés dos apóstolos, também os castrara. Toda seita é uma ponte entre religião e crime, por isso a Skopiétz foi banida na Rússia e seus líderes foram perseguidos pelo Czar e, posteriormente, também pelo governo comunista, tendo sido praticamente dizimada por Stalin, na década de 1940 do século XX. Há relatos de ainda existir na Letônia a sinistra seita, com membros identificados em 1990.
Com a proibição da seita, muitos de seus membros se espalharam mundo afora, e juntando as peças do quebra-cabeça, estou convicto de que a família de Ivan fazia parte dessa macabra seita cristã. O patriarca Igor não veio fugido da Revolução Russa, mas muito provavelmente fugiu na condição de fanático religioso, condenado à prisão perpétua na fria Sibéria, destino semelhante ao dos seus irmãos de fé, se em seu país tivesse permanecido.
Para mim, agora vejo tudo de forma clara: naquela aterrorizante noite iria ocorrer o ritual de iniciação de Ivan na Skopiétz, o seu “batismo de sangue”, a purificação da alma pela autocastração. Porém, Ivan estava apaixonado por Francisca, pretendia se casar com ela, e, desse modo, a castração o impediria de formar uma família, ter filhos, como toda mulher italiana desejava. Ivan contou ao seu pai e aos demais presentes, negou-se a se autocastrar, disse que a vida nova no Brasil exigia uma postura diferente para ter uma vida boa e digna de Deus. Seu pai, fanático religioso, se enfureceu e tentou o agarrar, mas Ivan se desvencilhou e correu para a mata, perseguido por seu genitor com a faca em punho. Este alcançou Ivan na altura da nascente d’água, espancou-o e o castrou. Ivan gritou, menos de dor do que pelo triste destino que teria ao não poder dar frutos à sua amada. Esta sequer iria querer laços matrimoniais com um homem mutilado nas partes íntimas. O Pai, após se dar conta da loucura perpetrada, fugiu, para nunca mais ser visto. Algum tempo depois, Ivan, não suportando a sua situação, não suportando a rejeição de Francisca, foi até a mata, bem no palco de sua tragédia, e se matou enforcado. O resto da família, já destruída pelo destino macabro de Ivan, foi abatida pela febre amarela. Não sobrou uma testemunha para contar a história. Ficaram reminiscências na memória de Francisca, apresentando a consciência prejudicada pela loucura. Ninguém sairia ileso psicologicamente de uma história tão sinistra e dramática. Essa reminiscência fragilizada pela insanidade chegou aos ouvidos do velho boiadeiro, contada por sua mãe, prima da Francisca.
Procurei meu amigo depois de sete anos com o propósito de lhe contar tudinho. Ele me ouviu com atenção, absorvido em cada palavra. Concordou com a minha conclusão e confessou:
— Depois daquela inspeção na mata, passei a ouvir, de quando em quando, gritos à noite que pareciam vir de lá. Pobre daquela alma… Creio que agora se livrará do fardo do destino de azar. Acho que ele esperava alguém contar a sua trágica história de amor!
Retornei para casa com o sentimento de dever cumprido. Engraçado, depois de tanto tempo, o morto Ivan passou a ser um amigo; se tivéssemos nos conhecido, seríamos grandes amigos reais. Naquela noite eu dormi um sono de paz. Sonhei que estava sentado numa praça cheia de árvores e flores lindas, cheia de pássaros. Um jovem se aproxima, entrega-me uma caixinha e me diz: “Obrigado por tudo. Fique em paz”. E sai correndo para nunca mais voltar. Era o Ivan, tenho certeza! Quando fui abrir a caixinha, o alarme do celular me despertou e eu acordei. Não tive a oportunidade de saber o que significava aquela caixinha e não pude ver, no sonho, o que se encontrava protegido dentro dela. Nem todo mistério se mostra nu totalmente! Ao leitor, cabe o exercício da imaginação. “Entender é sempre limitado, mas não entender pode não ter fronteiras”, diria a contista Clarice Lispector.
Quanto ao velho boiadeiro, alerto o amigo leitor que não sei se realmente ele existiu ou se foi um delírio, fruto de minha embriaguez, de algo muito além do meu parco entendimento. Contudo, o seu rosto, a sua voz, os seus gestos grudaram em minha mente como a sucuri abraça o ingênuo e despreocupado bezerro na margem do córrego.
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