Por onde Começar a Ler Guimarães Rosa? - Recicla Leitores

publicado em:31/05/20 3:46 PM por: Beto Oliveira Beto OliveiraDicas Literárias

Essa é uma opinião, recomendações e impressões de um leitor leigo, embora beato do autor.

Tudo em Guimarães Rosa tem primeiras, terceiras, quartas et ceteras camadas. Para se ter uma ideia, há uma área de estudo da literatura rosiana que analisa exclusivamente os nomes que o autor deu às personagens de sua obra. Entender o significado oculto no nome deles é uma chave fundamental para a compreensão do todo da narrativa. Esclareço : tal profundidade é mais em meio acadêmico ou por estúrdios leitores viciados em criptografia e afins; artesãos no decifrar.

Essa riqueza de detalhe, essa brincadeira rosiana com a palavra foi num evoluindo e, me parece, o seu ponto de perfeição, o paroxismo, ocorre nos curtos contos (uns 40 e trestanto, além de excelsos prefácios itálicos) da obra Tutameia – Terceiras Estórias. Não sou um acadêmico em Letras e não leio literatura com um propósito de pesquisador, contudo, me parece evidente que a genialidade do Guimarães Rosa não tem paralelo na literatura nacional e, quiçá, no mundo.

Minha impressão pode ser que seja desprovida de argumento técnico especializado, sem comunhão de posições dos melhores e brilhantes críticos literários, entretanto, não há dúvidas de que o conjunto da obra rosiana compõe um projeto único, singular, extraordinário. Peculiar ao extremo. Machado de Assis defendia que a obra literária tem sempre um tom de plágio. As histórias seriam, portanto, recontada, em outra roupagem, por outro prisma. O brilhante Machado tinha essa visão e foi coerente com ela, e sua essência está em suas obras. Em Machado você vê reeleituras de Balzac, Flaubert, e tantos outros. Os temas são semelhantes ou circulam os mesmos territórios adjacentes. A ambientação é irmã gêmea dos europeus.

Em se tratando de João Guimarães Rosa, aí até as estrelas e o céu são diferentes. Não há “plágio bonus”, não há precedentes, muito embora as referências literárias e filosóficas em milhares se fazem presentes, na superfície, nas entranhas e na borda do texto. De repente você, leitor atento, está lendo e vem à baila uma sua ilação : “Nossa, isso me lembra do Nietzsche.”

É, em verdade mor, Nietzsche é muito em Guimarães Rosa, mas por lógicas do ethos rosiano. Não é que Nietzsche esteja nas entrelinhas na condição de protagonista referencial. Não, pelo contrário. Para mim, o Guimarães Rosa, homem erudito, dominante de mais seis línguas e “trestanto”, porém, nascido numa vila do interior de Minas Gerais, tendo toda a infância e mesmo na sua fase madura, convivido com o homem singelo, com o vaqueiro, o sertanista e tais morros, e tais brejos e minerais, ele, João Guimarães Rosa, na altura de sua sapiência e experiência de mundos, quer mostrar que toda a sofisticada filosofia ocidental, produzida pelo homem da cidade, dá ciência e da letra, também é forjada pelo homem singelo e rude do sertão e do interior. Produz e experiencia as vastas sabedorias, ainda que este homem catrumano ignore tamanha proeza dele.

Veja só o que se descreve sobre as inconscientes (?) percepções do personagem Romão, do conto Reminisção, em Tutameia:

“Romão, hem, gostou dela, assaz descobridor. Pois — por querer também os avessos, conforme quem aceita e não confere? Inexplica-o a natureza, em seus efeitos e visíveis objetos; ou como o principal de qualquer pergunta nela quase nunca se contém.”

No final do parágrafo, ainda consta como a esclarecer o extrassensorial do caipira Romão. Eis que:

“Mas ele tinha em si uma certa matemática. E há os súbitos, encobertos acontecimentos dentro da gente.”

Eu vejo, capto, “matematizo” igual ao Romão, por meios nem sei quais, que a obra do Guimarães Rosa tem muito de biográfico, isso é, muito do que ele coloca no papel não foi mera invencionice, mas algo, alguém, um acontecido vivenciado por ele, ou recontando para ele, ou ambos. Ele, mais (re)descobre do que inventa. Um inventar na reeleitura de lembranças com prismas aguçados, ampliados por seu “bornal” atolado de erudição colhida no ato de existir e se espantar com míseros detalhes, apreender o algo a mais das coisas, em quase voo de reminisção platônica.

Com tais considerações e sobejos pontos e vírgulas, recomendo, humildemente, o itinerário de leitura das obras do Guimarães Rosa, a saber, o ponto de largada:

Tenho para mim que o ponto de partida para ler a obra dele, evoluindo, na marcha progressiva do autor, de modo a facilitar a apreensão das peculiaridades do referido artista, sugiro que você inicie a jornada do leitor “no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais”. A dizer : comece pelo conto “O burrinho pedrês”, do livro Sagarana. Não que os contos daa mencionada obra sejam desprovidos de polissemia, mas há um enredo mais palpável, de “velhaca” linearidade.

Bom que se diga, ler Guimarães Rosa é um exercício divertido, mas laborioso, exigente. Numa das tantas epígrafes do livro Tutameia, o Rosa nos alerta em citação filosófica:

🔦💡
“Daí, pois, como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, fundada em certeza de que, na segunda, muita coisa, ou tudo, se entenderá sob luz inteiramente outra.”
(Schopenhauer)

Abaixo, um poético parágrafo do conto inaugural de Sagarana*:
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“Para ser um dia de chuva, só faltava mesmo que caísse água. Manhã noiteira, sem sol, com uma umidade de melar por dentro as roupas da gente. A serra neblinava, açucarada, e lá pelas cabeceiras o tempo ainda devia de estar pior.” — João Guimarães Rosa, no livro “O burrinho pedrês”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012


* Pesquise como o autor criou o título do livro, “Sagarana”. Guimarães Rosa foi um neologista de mão cheia. É prazeroso quando encontramos suas palavras fabricadas durante a leitura. A gente, em regra, fica em suspenso, pasmo; logo sorrimos, e nos projetamos para uma palavroteca. E aí começa a leitura interativa, 3D, triangular: a tríade autor-obra-leitor. A gente vai meio que fazendo uma autópsia da estúrdia, estranha palavra. Um novo mundo se abre diante da gente, e constatamos que, na praxe de compreensão do texto, acertadamente dizem os linguistas quando afirmam que a linguagem herdada é elemento limitante da nossa visão de mundo. Há que se alargar o pensamento, desbravar a potencialidade linguística. No parecer alfinetado do próprio Guimarães Rosa, carecemos de superar os “hábitos estadados”.

Cada vez mais a brincadeira fica ibstigante: Letra por letra, cortamos o prefixo, separamos o miolo, e reservamos o sufixo. É um quebra cabeça invertido. Um desmontar. Ou, na lógica de uma pequena ‘estoriinha’ contada pelo Guimarães Rosa, nesses termos por quase: Uma criança vê uma casa sendo demolida, e comenta ao pai:
“Pai, estão construindo um terreno!”

Em desfecho:

“O idioma é a única porta para o infinito. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito. Tudo é a ponta de um mistério. Ah, dualidade das palavras!”
Guimarães Rosa

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Em entrevista ao Jornal da USP e à TV USP (veja o vídeo), a professora Sandra Guardini Vasconcelos fala sobre o escritor, sua obra e o acervo adquirido pela USP. “Guimarães Rosa começa sua carreira literária em 1946, com o livro de contos Sagarana, que foi muito elogiado pela crítica. Dez anos depois, lança duas obras monumentais: Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. E se torna um escritor reconhecido, definitivamente incorporado na grande galeria dos escritores brasileiros.”


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Nascido no município de Gavião Peixoto, inteiror de São Paulo, no ano de 1977. É advogado, e recentemente iniciou sua caminhada pela escrita criativa, tendo contos publicados em antologias: O Morro do Diabo, na obra Vozes da Terra, Editora Publiquei On-line. O Retorno do Saci, na antologia Quando a Lenda Ganha Vida, Editora Sinna. Dentre seus autores preferidos, destacam-se Machado de Assis, Guimarães Rosa, Edgar Allan Poe, Philip K. Dick é Lygia Fagundes Telles.