Quem é você, Maria? - Recicla Leitores
Lembro-me da primeira vez que vi aquela mulher. A minha vida estava por um fio, nada mais fazia sentido. Não via mais saída a não ser me afundar num copo de bebida. Durante o dia, fugia dos credores. Isso me exigia uma habilidade tamanha, mas me saía muito bem na arte de me tornar invisível. Ao anoitecer, me chafurdava nos locais mais escuros. Geralmente estacionava meu corpo cansado no balcão de alguma espelunca fétida e bebia o uísque mais barato até ser enxotado pelo proprietário. Às vezes, jogava sinuca com algum outro fodido. Era o que tinha. Nos piores antros você encontra uma boa alma para lhe pagar uma bebida. Os desconhecidos e anônimos notívagos, porque os antigos amigos já não me acompanhavam mais como antigamente, quando eu tinha um bom salário. A família também não me tolerava mais. Meus pais já eram falecidos, meus irmãos não falavam comigo há anos nem para pedir favores, como era a praxe de tempos remotos. Quando você atinge um grau de inutilidade, principalmente econômica, as máscaras de todo mundo caem. Sentia-me aquela barata kafkiana, abandonada por todos na solidão do quarto. No entanto, sei que muita coisa ruim foi minha culpa. Não os culpo; só não entendo porque ainda se arvoram cristãos. Ninguém perdoa ninguém, assim eu concluía naquela época.
Na máquina de música tocava um sertanejo brega, sarcasticamente signado universitário pelo mercado musical. Eram onze da noite, eu estava sentado numa cadeira alta do balcão, na TV passava uma partida do Brasileiro, jogo entediante. De repente, aquela mulher surgiu do nada e tomou lugar na cadeira ao lado. Pediu uma taça de vinho tinto seco. Aquele gosto refinado me surpreendeu. Soltei um ligeiro sorriso, e ela então se dirigiu a mim e falou: “Não gosta da minha bebida?”
Virei-me para a minha interlocutora e dei de cara com seu rosto a poucos centímetros do meu. Minhas pernas balançaram, uma leve dispneia me atingiu. A voz se negava a sair da minha boca. Permaneci em silêncio por um razoável tempo. A sua beleza, aquele rosto enigmático… Fiquei estonteado. Ela percebeu minha abrupta inconsistência psicossomática.
“Fale comigo, eu não mordo.”
Começou a dar risada. Segurava a taça com delicadeza. Eu precisava reagir. O barman me espiava, curioso. As palavras, enfim, me surgiram.
“Vou contar uma história para você, moça, se me permite”, olhei fundo nos ohos dela, mas não tive força o suficiente para manter o olhar. Ela me olhava com a força do sol.
“Adoro histórias! Por favor, me conte. Estou ansiosa.”
Contei a história. Queria mostrar que apesar de ser um homem ébrio e alvestido, eu tinha uma certa erudição.
“Certa vez uma orquestra sinfônica da Alemanha veio ao Brasil. Eram músicos brilhantes, virtuosos, disciplinados no estudo da arte. Fizeram pomposas apresentações pelo Brasil. Foram aplaudidos pela elite, pela burguesia. Foi um sucesso total, como deveria ser. Mas o maestro tinha um sonho a realizar: levar sua sofisticada orquestra, seus músicos talentosíssimos, para se apresentarem a uma tribo indígena. Lá foram eles para o Mato Grosso do Sul. Enfim, apresentaram-se. A última música foi a nona sinfonia de Beethoven. Quando encerraram a apresentação e aguardavam os aplausos, os índios permaneceram em silêncio por alguns minutos, até que cada um se levantou e retornou para seus lares. O maestro ficou encabulado, procurou o cacique para perguntar porque os índios não gostaram da apresentação, nem se quer se deram ao luxo de aplaudir, ainda que timidamente. Então o cacique lhe esclareceu que na cultura daquela tribo o silêncio é a maior das homenagens quando um índio se vê diante de algo sublime e divino.”
A mulher ouviu toda a narrativa, bateu palmas e perguntou “O que essa história tem a ver com nós?”
Peguei ela, pensei comigo.
“Quando vi você, bela como nunca tinha visto antes, homenageei com meu silêncio inicial.” Ambos sorrimos. O barman me chamou de patético. Durante toda nossa conversa, eu não conseguia olhar nos olhos dela. Tinha algo diferente naquela moça. Não compreendia como hoje compreendo.
Nosso bate-papo fluiu madrugada afora, embora eu evitasse mirar diretamente em seus olhos. Por algumas vezes, tentei de relance cruzar os olhares e manter posição, porém sentia uma espécie de vertigem, o que me fez desistir. Tinha medo de me petrificar diante daqueles olhos cuja força irradiada era-me indecifrável, assemelhando-se aos olhos fulminantes e míticos da Medusa. O cabelo dela era de um tom negro forte, comprido, brilhava com movimentos laterais. Sua pele era morena e acima dos olhos surgiam majestosas sobrancelhas de laivos fortes. Trajava uma roupa sensual, intimidante. Meu temor era de me apaixonar. Sua voz inspirava carinho, desejo, conforto. Poderia muito bem ser uma sereia a me seduzir e afogar no fundo dos oceanos. Diante de tanta beleza, por um momento, me senti sortudo. Havia muitos rapazes no bar, e eu não tinha dúvidas de que era o menos atraente. No entanto, ela permaneceu ali comigo. Alguns imbecis invejosos encostavam no balcão e cochichavam algo no ouvido dela. De repente, saíram chateados. E eu dava risada por dentro. Eu era o cara naquela noite.
Numa determinada hora – umas duas da manhã – a máquina de música parou. Ela se levantou e foi escolher uma canção. Eu esperava algo trivial, porém, mais uma vez, aquela moça misteriosa me surpreendeu. Apertou o play e logo tocou Vinícius de Moraes. Um clássico do pequeno poeta, Canto de Ossanha. Já de volta ao seu lugar, ao meu lado, indagou-me se eu conhecia a toada.
“Olha, sou um cético, não acredito em nada além da matéria e energia. Não sou ligado à religião, mas faz tanto tempo que não tenho alguém que dá até vontade de ir atrás de um macumbeiro”, falei arrogantemente e soltei uma gargalha estranha.
Ela me olhou de soslaio e comentou:
“Você pode uma hora se surpreender. Há muitos mistérios por aí. Mas enfim, conversamos de tudo e ainda não nos apresentamos. Prazer, meu nome é Maria Padilha”, estendeu o braço e me apertou a minha mão em cumprimento.
“Prazer, João Alfredo, mas me pode me chamar de John.”
Já estava tarde, eu precisava ir para casa. Saímos juntos e caminhamos um tempinho pelo calçadão. A noite estava linda, a lua cheia jogava sobre nós a pureza da poesia. Já sem assunto, fiz uma grande besteira: uma pergunta grosseira e desnecessária.
“Você é tão linda, eu tão esquisitinho… Afinal, você é uma garota de programa?”
Ela soltou uma demorada gargalhada. Balançava a cabeça como se me repreendesse.
“Sou bem mais do que isso. Com um estalar dos meus dedos, posso encher a sua vida de amor e desejos.”
Arrepiei-me antes de dar uma risada seca.
“Nossa, tenho tantos desejos…Ai se a Eva… Mas ela nem se dá ao luxo de me cumprimentar, salvo para dar ordens. Pensa numa loirinha gostosa. Mas ela só curte homens jovens e playboys.”
Depois de falar, pedi desculpa pela indelicadeza das palavras. Ela então me lançou um desafio.
“Você duvidou dos meus poderes. Se você me pedir, faço ela te desejar quando vocês se virem novamente no trabalho.”
Topei. Meu ônibus chegou. Despedimo-nos. Ela disse que sábado iria me visitar.
“Mas você não sabe onde moro.”
Seus olhos brilharam. “Eu te acho.”
O ônibus partiu. Espiei pela janela, mas Maria não estava mais na calçada. Minhas pernas amoleceram. Maria Padilha, você é louca, pensei. Não peguei o número do celular dela; talvez nunca mais a veria.
Era segunda-feira, acordei sem ressaca. Milagre, geralmente a dor de cabeça me atacava após uma noitada de bebedeira. Agradeci aos deuses, como se realmente acreditasse em metafísica. Será que aquela mulher sensual reduzira a minha racionalidade? Tomei um banho, preparei um café forte, tostei uns pães velhos com margarina e partir para entregar currículos no centro da cidade. O metrô estava lotado. Um pessoal protestava contra a homofobia. Outros tantos carregavam debaixo do braço pastinhas de documentos. Eram milhares de desempregados à procura de uma vaga. O sistema nos faz competir um com o outro. Por outro lado, aqueles jovens ostentavam cartazes pedindo respeito. Que merda de mundo é esse, pensava comigo, onde pessoas ainda precisam gritar para serem reconhecidas como dignas de sua própria identidade? De repente me vi numa distopia, real e feroz.
Andei pelo centro entregando currículos. Iludia-me, porém; Eu não tinha esperança alguma. Quem daria uma oportunidade de emprego estável a um homem com quarenta e oito anos? Só possuía o dinheiro da volta para casa e mais alguns trocados para comer um salgado e tomar um café. Entrei na padaria do Manoel, pois ele sempre me servia um café de graça. Foi amigo do meu saudoso pai. Gostava de mim. Vivia me convidando para trabalhar com ele. Nunca aceitei. Não por orgulho, mas porque não queria causar problemas.
Não duvidava do poder destrutivo que detinha naquele período conturbado da minha vida. Não queria perder aquele vínculo afetivo. Raro para mim. Preferia me manter na corda bamba com o bico de sábado na loja da Eva, embora não desse sequer para cobrir o aluguel.
A pensão alimentícia da minha filha também estava atrasada há meses. Fui citado judicialmente a pagar. Procurei a Defensoria, o advogado nomeado me aconselhou a pagar. Tentou um acordo, mas a mãe não aceitou. Apresentamos uma justificativa de desemprego. Em breve, o juiz iria decidir. O jovem causídico me desenganou. Era questão de tempo para a decretação da minha prisão civil, com prazo de até noventa dias. Aqueles foram tempos angustiantes para mim. Justiça e agiota no meu pé. O pior deles, Antenor Machado, me deu prazo sob pena de acabar com minha vida. “Viver é muito perigoso”, dizia o jagunço Riobaldo, dos sertões das Gerais.
Confesso que naquela semana não saí de casa até sexta. Recebi algumas ligações de cobrança, não atendi. Deixei o celular grande parte do tempo no modo avião. Passei fome. Não havia crédito em meu celular, nem Internet para que eu pudesse matar o tempo. Só me restava o livro de poemas do Álvaro Campos. A capa estava bem gasta, colada com durex. Presente de uma namorada do ensino médio. Vanessa, como era inteligente… Na memória, surgiu ela declamando para mim versos que nunca mais esqueci.Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo ./ E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, / Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo…
Estressado em razão de não ter o que fazer e ficar tocaiado a semana toda em casa, não via a hora de chegar o sábado para trabalhar na loja da Eva. Lá serviam um café bem apetitoso de manhã. No final da tarde, eu sairia com cento e cinquenta reais no bolso. Sem contar que veria aquele avião de mulher. Lembrava do desafio da Maria Padilha. Divertia-me só de pensar. Constatei o quanto a ilusão é importante para, apesar de tudo, levantarmos diariamente.
No meio daquela semana, minha filha ligou para mim. Perguntou como eu estava. Respondi que lutava diariamente para conseguir um emprego. Contei da correria de segunda-feira, entregando currículos. Ela disse que tudo bem, que entendia, mas sua mãe também passava por um momento difícil. Despediu-se com uma voz chorona. Creio que ela implicitamente me alertava para os desdobramentos do processo. “Cuidado, pai”, queria me dizer.
Amo minha filha com todo o fervor do mundo. Senti-me o homem mais fracassado na face da Terra. Feri o coração de uma mulher que se dedicava à família e, para piorar, não tinha condições de dar o mínimo para a minha menina. Ela tinha dezesseis anos e em breve entraria para a universidade. Queria o melhor para ela, mas só torcer não era o bastante. Uma estudante adolescente precisa de dinheiro para livros, transporte, vestimenta e alimentos. Por um momento pensei em me matar, mas isso não resolveria o futuro da minha filha, muito menos me redimiria dos erros cometidos que me levaram à sarjeta.
Enfim chegara o final de semana. No sábado lá estava eu na loja da Eva, tomando um caprichado café da manhã. As vendedoras perceberam a minha fome gigante. Olhavam-me piedosamente, como bondosas amigas. Nunca paquerei nenhuma delas. A amizade é uma forma de amor e a mão amiga, o carinho mais sublime que existe. Elas gostavam das minhas histórias sobre a noite, os bares, as prostitutas, as ruas, os pecados. Eu ponderava que não era bem assim, mas elas insistiam, gostavam dos detalhes inconfessáveis. Eu aumentava um pouco, satisfazia o interesse daquelas moças. Adoravam papos estranhos. Eu era um cara estranho, diziam.
Naquele dia estávamos conversando na copa, localizada no fundo da loja, ao lado do depósito de produtos, quando a patroa chegou. Seu perfume impregnou graciosamente o local. Aguardávamos alguma repreensão, mas Eva sinalizou bom dia, sem qualquer preocupação. Ao vê-la tomei uma postura séria, adequada a um segurança: coluna ereta e ombros para a frente. Um soldado nato, treinado nas mais exigentes casernas. A patroa começou a falar, dizia que precisava pegar umas caixas no depósito e leva-las à sua casa. Alguém teria que acompanhá-la. Geralmente, o Júnior fazia esses serviços externos. Naquela manhã, não. Ela se dirigiu a mim.
“John, é esse seu nome, né?”, assenti com a cabeça. “Por favor, pegue aquelas caixas ali e coloque no porta malas do carro. Toma a chave.”
Minha mão tocou na dela e, por algum motivo que não consigo explicar, mantive-a presa nas pontas dos meus dedos por um ligeiro instante. Ela me olhou, como que não compreendendo o gesto, sorriu e soltou a chave do veículo. “Assim que carregá-las, me espere no carro. Você vai comigo.”
Júnior interveio, a cara fechada.
“Eva, onde você tá com a cabeça? Ele é o segurança! Vamos abrir a loja. Ficaremos sem proteção?”
Eva se serviu de um café, sorveu um gole, virou-se para o xereta.
“Você cobre a ausência dele.”
O rapaz não se deu por vencido. Tentou contra-argumentar. “Mas…”
A patroa fingiu que nem ouviu.
“John, vamos, é pra hoje!”
Carreguei as caixas até o carro e esperei Eva no estacionamento. Ela saiu da loja e veio caminhando acelerada em minha direção. Olhou com um ar de reprimenda. “Por que não está dentro do carro? Vamos!”
Seguimos pela via marginal. O trajeto até a casa de Eva demorava cerca de trinta minutos, considerando o caos do tráfego pela manhã. A patroa é loira, cabelos lisos. Rosto simétrico, nariz arrebitado, lábios medianamente carnudos. Usava uma roupa chamativa. Seus ombros surgiam com pintas e sardas na blusinha sem manga. Os seios fartos quase ultrapassavam o limite do decote. Eva apresentava corpo esbelto, cintura fina e barriga definida. As coxas, grossas e torneadas no ferro de academia de musculação, mostravam-se exuberantes, refletindo a luz do sol da manhã. Uma mulher no auge de sua beleza. Vinte e sete anos, eu chutava.
Durante grande parte da viagem não falou comigo. Restringia-se a me olhar de soslaio. Toda mulher bonita no fundo quer ser vista, eu pensava. Detinha a minha visão obliquamente a ela a todo instante. Os óculos escuros me ajudaram; ela não tinha como saber para onde minhas pupilas estavam direcionadas. Fiquei excitado. Não me aguentei; meu ‘coleguinha’ explodia dentro da minha calça. Era perceptível. A vergonha transparecia em meu rosto. Estava quente e, como me conheço, deduzi também estar ruborizado. Não havia o que fazer senão esconder o meu estado de explícita excitação física. Coloquei minhas mãos cruzadas por cima do órgão rebelde. O perfume dela me trazia imagens sensuais, e eu não tinha como abrir o vidro do veículo, já que Eva acionara o ar-condicionado. Fiquei numa posição meio corcunda, desagradável, mas necessária. O disfarce estava funcionando.
Tudo caminhava bem até que Eva me dirigiu a palavra.
“John, pega o DVD que está no banco traseiro. Vou colocar uma música para animar nossa viagem.”
Tive que me levantar e estender o corpo para a parte de trás do carro. Peguei o DVD e, quando me voltei meu corpo, notei que Eva com os olhos vidrados na minha parte de baixo. Viu meu órgão intumescido.
“Coloca o DVD no rádio, John.”
Fiz o que ela me pediu. Tinha bom gosto, Pink Floyd. Olhei rapidamente para o decote dela, percebi os mamilos acesos. Ela deu uma risada. Baixou os olhos para minha calça.
“Nossa, John, assim você vai ter um infarto”, só me restou sorrir. “Conheço a sua fama, viu? Pensa que as meninas não me contam?”, ela sorria e continuava fixa em minha calça.
“É tudo lenda, o que dizem sobre mim. Nunca faltei com o respeito com nenhuma delas.”
Ao terminar a frase, senti a mão dela alisando meu pênis por cima da calça.
“Meu marido está em casa, vou dar pra você logo ali, naquela rua deserta.”
Eu não acreditava naquilo. Eva passou pelo pontilhão e entrou numa rua. Parou. “Goza em mim”, foram suas palavras. “É uma ordem. Não comente com ninguém”. No rádio, tocava Wish You Were Here, minha música preferida do Pink Floyd.
Deixamos as caixas na casa de Eva, momento em que conheci seu marido dela, um jovem rico, bonito e metido à besta. Acabei de comer sua mulher, babaca!, pensava comigo, quando ele me tratou rudemente. No caminho, Eva comentou: “Meu marido é um escroto. Casei por interesse, confesso. Foda-se ele.”
Caímos na risada e seguimos de volta à loja ouvindo The Wall. Meu pensamento agora estava voltado para a morena misteriosa, Maria Padilha. Teria tudo sido mera coincidência? Não, não podia ser. Maluca!
O expediente daquele sábado foi tranquilo. Eva agia como se nada tivesse acontecido. Eu também. Uma transa quase sempre não significa nada. É apenas nosso lado carnal aflorando. A biologia explica, Freud acho que também. No entanto, Eva agora vivenciava a minha presença. Antes eu me via como um homem invisível aos olhos dela. Ser reconhecido como alguém era muito mais gratificante que a foda dada. Não somos só corpo, alguém uma vez me disse. Ou li? Os livros falam com a gente. Dava na mesma. Demorei quarenta e cinco anos para aprender isso. Ninguém vira um estoico do dia para a noite.
A loja fechou às dezoito horas. Peguei o busão e depois o metrô, cheguei em casa às nove e meia. Já no meu bairro, fui à quitanda do Chico e comprei legumes para preparar uma sopa. A noite estava um pouco fria. Um caldo ia bem. Lá se foi um terço do meu pagamento!, refleti. Enquanto cortava e picava os legumes, me lembrei que a morena misteriosa disse que me veria no sábado. Logo desencanei, afinal ela não tinha meu endereço, muito menos meu número de telefone.
A sopa ficou deliciosa. Se a morena viesse mesmo, iria gostar. Minha mãe foi quem me ensinou a prepará-la. Aprendi certinho, mas nunca acertei o tempero dela. Bateu uma saudade… Uma saudade gigante. Na geladeira, havia meia garrafa de vinho. Vinho barato, doce. Enchi duas taças, uma para mim e uma para minha mãe. Era uma forma de experimentar sua presença. Ela estava ali, no meu gesto. “O universo é a mente”, diria o sábio egípcio, três vezes iniciado. Que sabedoria! Um brinde aos sábios que marcaram o caminho da humanidade! Naquele começo de noite, o sentimento do mundo tomou conta de mim. Olhava para a garrafa, dizendo: “Não acabe, por favor, não acabe.”
Depois de tomar metade da metade do vinho, bateu o peso da solidão e do fracasso. Uma voz me dizia: “Cara, você comeu uma mulher gostosa. Anima!”. No entanto, eu estava sozinho. Pensei em Eva. De certa forma, sua situação era mais dramática. Casada, porém não suportava o playboy. A vida não dá moleza para ninguém. Tudo tem um preço.
A bebida doce me amoleceu, cochilei no sofá e fui acordado pelo toque do celular. Acordei assustado, visualizei a tela e não reconheci o número que me ligava. Eram onze horas. Atendo.
“Boa noite, John. É a Maria Padilha. Lembra?”
Não acreditava naquilo. “Onde conseguiu meu número?”
Ela me interrompeu. “Eu disse que te acharia. Acho que você tem provas robustas para não duvidar mais de mim, né sortudo?”. Sorri, abanando a cabeça. Ia falar algo, mas ela se adiantou. “John, você tem que abandonar a sua casa imediatamente. Tem exatamente sete minutos para pegar o que for possível, pular a janela dos fundos e correr para o mais longe que conseguir.
Meu coração começou a bater aceleradamente. “Você está brincando comigo…”
Maria não deixou que eu terminasse a frase. “John, você tem muitos inimigos, um deles quer te matar”, veio à minha mente a imagem do cretino Antenor Machado. Olhe pela janela, com cuidado. Há um carro na esquina. Homens estão na rua. Em breve, invadirão sua casa. Pegue suas coisas e dê o fora. Agora você tem cinco minutos. Confie em mim. Estarei com você, meu amigo.”
Ela desligou. Peguei algumas roupas e o livro de poemas, e dei no pé. Corri uns quatro quilômetros, cheguei a uma praça. Havia mendigos dormindo nos bancos e no chão. Acomodei-me por ali e, esgotado, dormi debaixo de um ipê.
Pela manhã, fui acordado por um guarda municipal, me cutucando com um cassetete. “Vamos circular, vagabundo. Some!”. Levantei-me e atravessei a praça. Na rua lateral, havia uma feira. Comi dois pastéis. A barraqueira observava com curiosidade o meu estado. Sem ter para onde ir, caminhei mais algumas quadras e parei num campo de futebol. Jovens jogavam pelada. Sentei numa banqueta e contemplei o vigor dos pernas de pau. Mais parecia um octógono de vale-tudo. Era engraçado.
Pouco tempo depois, o celular vibrou. Era Eva. O que ela queria comigo em um domingo de manhã?
“John, tudo bem? Onde você tá?”
Contei toda a história para ela, menos o detalhe da morena misteriosa. Ela me acharia louco. Eva, uma mulher linda, rica, soluçava do outro lado do telefone. O marido saiu para jogar golfe com os amigos, não voltaria antes das oito da noite. Ela veio me buscar. Alugou uma quitinete para mim por um mês. Perguntou quanto eu devia para o Antenor Machado.
“Quinze mil.”
Ela assobiou de espanto. “Vou dar um jeito nisso. Depois você me paga.”
Protestei sobre Eva querer pagar minha dívida, no entanto, ela não deu atenção. Beijou o meu rosto, depois que almoçamos e se foi. “Se cuida, John. Não vou te abandonar.”
Imediatamente a voz da Maria Padilha invadiu a minha cabeça. Confie em mim, estarei com você. A confusão assombrou minha mente. Quem era Maria Padilha? Eva e ela se conheciam? Por que, de repente, duas mulheres passaram a ser uma espécie de anjo da guarda? Algo parecido com o daimon de Sócrates?
Maria não me ligou naquele domingo. Ela sabia que eu me encontrava em segurança, cogitei.
Na segunda-feira, Antenor Machado ligou para mim. “Você é um cara de sorte, John. Zerou. Espero não te ver por um bom tempo. Que filé você arranjou, hein?” E desligou. Eva adimplira a minha dívida com o agiota. Agora eu devia a minha vida a duas mulheres lindas. Como pagar tamanha obrigação?
O fato é que Eva não conseguia viver mais sem a minha presença diária. Demitiu o “insubordinado Júnior”, como ela dizia, e me contratou em seu lugar. Jamais pensei em prejudicar ninguém, no entanto, as coisas acontecem. Júnior teria que agir como eu, abraçar o seu destino, a sua vida, na dor e na alegria. Levar como aprendizado. A mim coube zelar pela felicidade da Eva. Ela me amava, eu via em seus olhos. Um amor quase fraternal. Uma jovem cuidando de um homem de meia idade. Fazíamos sexo semanalmente.
Passaram-se uns vinte dias. Eu já estava trabalhando como gerente na loja quando chegou um oficial de justiça acompanhado de dois policiais. Deram-me voz de prisão. Tratava-se do processo da pensão alimentícia da minha filha. Eva entrou em desespero. Queria pagar a dívida. Eu a acalmei, não queria que as pessoas suspeitassem de seus sentimentos comigo. “Você já fez muito por mim. São trinta dias preso numa casa de detenção. A dívida está em torno de trinta mil reais. Você não pode colocar em risco o seu negócio, a sua família, por causa de mim. Vai dar tudo certo.”
Os policiais me conduziram até a viatura, me jogaram na jaula de trás, bateram a porta e partiram. Eva ligava para o gerente do seu banco para tentar um empréstimo, contrariando o meu pedido. Depois de um tempo, quando eu já estava em liberdade, ela me contou que não conseguiu naquela semana a liberação do empréstimo.
Muita coisa aconteceu daí em diante.
Os devedores de pensão alimentícia não ficam presos com bandidos considerados perigos. Fui encaminhado para uma casa de detenção provisória, onde ficam trancafiados pessoas que praticaram pequenos delitos, sem uso de violência. No entanto, na prática isso não significa que não haja prisioneiros perigosos. Nos primeiros dois dias, nada de anormal aconteceu. Era sempre a mesma rotina. Pela manhã, éramos liberados para tomar sol e o café da manhã, e nos exercitarmos. Havia até uma biblioteca pequena à disposição. Cheguei a ir nela na manhã do meu segundo dia de prisão. Surpreendi com o acervo disponível. Passei algumas horas entre aquelas centenas de livros. Pensava muito em Eva. Pensava em Maria Padilha. Pensava em minha filha. Quanto sofrimento a minha vida cheio de fracasso gerou nas pessoas…
No terceiro dia, algo trágico aconteceu. Eu estava na fila do almoço no instante em que um rapaz com uma cara de mau esbarrou em mim. Encarou-me. “Cuidado por onde anda, coroa!”, gritou comigo.
“Mas você quem tombou em mim!”
Ele tirou da cintura um estilete e me golpeou no abdômen. Acordei num hospital, após ter passado por uma difícil cirurgia. A imagem do rosto daquele jovem homicida me assombrava. Do resto, não me lembrava nada. Havia um tubo na minha boca. Tentei me mexer, gesticulei, falar… Uma enfermeira, que mexia no soro conectado em alguma veia do meu corpo, se aproximou.
“Enfim acordou. Que bom. Vou avisar o doutor. Ele virá vê-lo. Você é um guerreiro, homem do céu! Descanse.”
Saiu da sala, me deixando cheio de dúvidas. Pela estética do cômodo, concluí que não estava em um hospital público. Na cortina da janela, havia um logotipo de um famoso plano de saúde. Um dos meus anjos da guarda mais uma vez me acudira. Minha família há tempos se desligou completamente de mim, salvo a minha filha.
O doutor entrou no quarto. “Quase te perdi, rapaz. Mas você voltou do outro lado. Viu algo lá? A gente já te dava como morto.”
O médico foi interrompido pela chegada da enfermeira, que agora ostentava em suas mãos flores lindas e cheirosas. Preso ao ramo vinha um envelope, dentro uma carta. “Guerreiro, uma amiga deixou lá na recepção para você. Quer que eu leia a cartinha?”
Assenti com a cabeça. Ela leu.
“Meu querido amigo, não pude evitar o ocorrido. São situações que fogem da minha alçada. De um jeito ou outro, você as enfrentaria. Tive que pedir favores aos meus irmãos para interceder por você. As mãos sagradas do médico que o tratou foram cuidadosamente escolhidas por mim. Nada é por acaso. Cuide-se, em breve o verei. Sua amiga, Maria Padilha.”
No rosto de todos ali presentes, vi incompreensão. Apenas agradeci ao meu anjo da guarda. A enfermeira organizou a mesinha, enfeitou-a com as flores e voltando-se para mim, comentou: “Você é muito querido pelas mulheres. Uma te traz flores. Outra custeia as despesas do hospital e cirurgia. Que segredo deve ter esse homem, doutor?”. Saiu gesticulando, sem obter resposta. O doutor sorriu. Contou sobre tudo o que ocorreu comigo antes e depois da cirurgia. Deu detalhes técnicos. Disse, enfim, que em três dias retiraria os tubos de mim. Pediu para que eu não fizesse esforço algum e foi visitar outros pacientes.
Maria Padilha parecia estar nas pétalas das flores. Sentia o seu fluído sensual e, ao mesmo tempo, divino. Decidi atender ao pedido do médico e dormi profundamente. Em meus sonhos, uma luz forte iluminava o meu rosto. Subia a escadaria do caminho do céu, brincando de amarelinha, como a mais pura criança digna do Paraíso.
Acordei na manhã seguinte, por volta das oito horas. Um pequeno tumulto na porta do meu quarto me despertara. Reconheci a voz da minha filha. Queria me ver. A enfermeira a barrou na porta, dizendo que eu ainda repousava e que as visitas não haviam sido liberadas. Lúcia tem o gênio forte, eu sabia que ela invadiria o quarto. Fechei meus olhos, fingi que ainda estava desacordado. A porta se abriu. Ela correu até a cama, chorava sobejamente. Ajoelhou-se, pegou carinhosamente na minha mão direita, entrelaçando nossos dedos. Suas lágrimas caíram no meu antebraço. Afobada, tagarelava sem pausa. “Pai, me desculpe, não queria que você fosse preso. Me perdoa. Não precisa mais pagar. Eu te amo.”
Segurei o choro. Queria abraçá-la. Contudo, a vergonha me impedia de olhar nos olhos dela naquele momento que, no final das contas, era constrangedor. Eu era um fracassado que colocou tudo a perder. Culpava-me, não merecia aquele amor. Agora, só queria morrer. Por um momento, excomunguei meus anjos da guarda. Não fazia jus ao amor delas por mim. A enfermeira, aos poucos, acalmou minha filha. Ela diminuiu o choro, já não soluçava mais. Beijou meu rosto. Perdia perdão. Eu queria dizer “Sou eu quem devo pedir teu perdão, meu amor.”
Continuei de olhos fechados, até que ela se foi. Quando a porta fechou, a barragem dos meus olhos se desfez; lágrimas transbordaram caudalosamente. Chorei um Rio Amazonas. A enfermeira retornou e, vendo meu abalo emocional, aplicou-me um calmante. Eu pedia cianeto ou o veneno pelo qual o pensador grego Sócrates foi sentenciado à morte: a cicuta. Mas minha vileza em nada se aproximava da altivez do pensador. Ele nunca merecera a ultrajante morte, ao contrário de mim, patético ser. De súbito, o medicamento produzira o efeito. Minhas neuras foram dominadas pela sonolência, e a morena misteriosa surgiu como um delírio, sorrindo, olhos flamejantes, uma taça de vinho na mão. Apaguei completamente.
No quinto dia de internação, a visita foi liberada. Eu já me movimentava melhor, com as restrições devidas. O tubo foi retirado da minha garganta, voltei a falar, com certa dificuldade, mas a voz saía inteligível. Era quinta-feira, recebi duas visitas muito gratificantes. Pela manhã, minha filha. Recebi-a com todo o meu amor. Choramos abraçados. Meu jeito brincalhão acabou contagiando aquela frágil alma ferida. Expliquei-lhe que eu era quem devia desculpas e não o contrário. Saí em defesa até de sua mãe, que agiu para o bem da filha. Minha intenção era contemporizar. A tragédia que aconteceu não tinha qualquer ligação de causalidade com a atitude da sua mãe e muito menos com minha filha. Fui preso porque não cumpri o meu dever. Fui esfaqueado porque o Estado não garante a segurança de seus custodiados. Acertadas as arestas sobre aquela tragédia e já estando eu e ela mais tranquilos, minha menina me comunicou que fora aprovada no vestibular. Solicitei à enfermeira que nos trouxesse suco. O orgulho encheu meu coração. Enfim, uma feliz e grata notícia.
Antes de ir embora, Lúcia me entregou um envelope lacrado. Uma carta de sua mãe. Ao ficar sozinho novamente, abri o envelope. Minhas mãos tremiam. Amei loucamente aquela mulher. Esperava muita emoção ao ler aquela carta. Retirei a folha de papel, reconheci a letra perfeita dela. Inconfundível. Por um momento, tentei evitar o início da leitura. Feri a dona daquelas letras dignas de um exímio calígrafo. Não havia como fugir. Meus olhos se fixaram naquelas linhas.
John, eu não iria suportar se você tivesse morrido. Eu sofri. Nossa filha… Meu Deus… Achei que ela ia enlouquecer. Eu ainda te amo. Nunca deixei de te amar. Mas não consigo perdoá-lo. Contudo, espero que me perdoe pelo ocorrido. Cuide-se.
Havia alguns borrões nas últimas palavras. Lágrimas de uma mulher que magoei ficaram ali registradas, prova de minha culpa incontroversa. Também manchei a carta com minhas lágrimas. Uma ideia providencial se abateu sobre mim: eu estava vivo e muita coisa poderia ser consertada. Um dia, ela me perdoaria. Isso não significava reatarmos a relação. O tempo e a paciência forjariam o momento oportuno para a conquista do perdão. Eu ensejava a redenção.
À tarde, meu leito foi ocupado pela beleza e espiritualidade da minha querida Eva. Começou a me relatar sobre a tentativa de fazer o empréstimo no banco. Em dois dias seria liberado, no entanto, a tragédia ocorreu. Ela segurava em minhas mãos, e eu dizia que estava tudo bem. Ela se sentia impotente com a situação. Só se acalmou quando inesperadamente eu disse “te amo”. Mais serena, contou sobre a loja, sobre o casamento. Pensava em se divorciar. Eu não sabia o que dizer a respeito da sua pretensão. Imaginei que ela estivesse fragilizada emocionalmente com o que aconteceu comigo. Esperava que, em breve, ela refletisse com maior racionalidade. Disse-lhe para ter paciência. Passou a tarde comigo, conversando amenidades. Agradeci pelo custeio do hospital e prometi pagá-la, não sabendo como ou quando. Ela caiu na risada.
Por onde anda a Maria Padilha? Essa pergunta martelava a minha mente.
Por um momento fiquei absorto, abstrai-me. Eva me tirou daquele momentâneo torpor.
“Quem te trouxe essas belas flores? Sua filha?”
Fiquei em silêncio. Foi a primeira vez que vi o ciúme nos olhos de Eva. Ela leu o bilhete que estava ao lado das flores.
“Quem é Maria Padilha?”
Precisei esclarecer de uma forma razoável e verossímil. Escolhi cada palavra que usaria.
“É uma moça que conheci um tempo atrás, num bar. Para falar a verdade, nunca mais a vi. Não sei como ficou sabendo da cirurgia. Deixou as flores na recepção. Nem veio me ver.
Eva agora era uma mulher que me amava, e sua alma acionou o modo DESCONFIADA. Queria porque queria conhecer essa amiga. Prometi que assim que tivesse alta iríamos vê-la. Como se eu soubesse onde encontrá-la…
Permaneci internado por vinte cinco dias. Em todos recebi a visita de minha filha, pela manhã, e da Eva, à tarde. Nesse período, recebi mais duas cartas da minha ex-esposa. Assuntos variados, em especial os preparativos da Lúcia para iniciar a faculdade de Geologia. As tragédias têm o seu lado bom; elas aproximam as pessoas. Assim eu pensava ao me ver falando novamente com Daiana, minha ex. Respondi mediante carta também, todas as vezes. Lúcia, fazia o papel de correspondente. Sentia-se bem ao ver a reaproximação de seus pais. De fato, era algo esperado entre dois adultos. Também me sentia feliz. Sentia o perdão cada vez mais provável por parte da Daiana.
Na minha última noite no hospital, Maria apareceu. Como da outra vez, no dia em que me ligou, o relógio marcava onze horas. Eu acabara dormindo enquanto assistia ao telejornal. Com os olhos fechados, tateava a mesinha que ficava ao lado da cama, procurando o controle remoto para desligar a televisão. Como não achei, abri os olhos e a vislumbrei sentada na cadeira de frente à cama. Tomei um baita susto. Maria Padilha me espiava com os olhos brilhantes. Ao me ver acordado, sua boca se abriu. Seus dentes brancos se mostraram. Os lábios se mexeram até formar um sorriso. Seu perfume me enlevou.
“John, não sei o motivo, mas você é o único mortal que me deixa excitada. Conta para mim o teu segredo, conta…”
Ela se levantou e começou a se despir. Eva era linda, mas beleza de mulher alguma se comparava a de Maria Padilha. Ela começou a se tocar, gemia e meu corpo vibrava, como se experimentasse um fenômeno telecinético. Um sopro percorria por entre minhas vértebras. A bermuda que eu usava ficou molhada. Ela se vestiu novamente e se aproximou. Fiquei mudo. Sua mão alisou o meu rosto, e eu chorei. Não de tristeza, era uma sensação indescritível. Algo muito além do meu entendimento me possuía. Minha voz ressurgiu.
“Quem é você?”
Senti seus lábios unidos, beijando minha testa. Ela também me perscrutava com aguçada curiosidade.
“Quem é você, John? Conta para mim o teu segredo!”
Pegou a minha mão e a colocou sobre o seu coração. Vi-me lançado numa espécie de montanha russa, a adrenalina disparou em meu peito. Luzes de cores nunca vistas cingiam o meu corpo. Eu escorregava por um tobogã, no centro do universo. Maria soltou a minha mão devagarinho. Voltei à Terra. Ela me observava, ofegante. Uma lágrima surgiu de seus olhos fulminantes, mas, antes de se precipitarem, vi as gotículas se evaporarem na quentura do seu rosto.
“Eu te amo, João Alfredo, e isso é incompreensível para mim.”
Tirou um punhal da sua cintura. Continuava me observando, segurando o objeto. Era o meu fim. Eu estava hipnotizado, subjugado, mudo, indefeso diante daquela mulher. Esperei pelo golpe fatal.
“Conta pra mim, John, qual o teu segredo?”
Com o punhal, ela furou a ponta de seu dedo indicador. O sangue brotou na forma de uma grande gota. Abriu minha boca, e a gota de sangue caiu em minha língua.
“Achou que eu te mataria?”, começou a sorrir. “Essa gotinha de nada vai ajudar na sua recuperação. Vai acelerar o seu metabolismo. Não duvide de mim, John.”
Senti uma energia percorrendo por todo meu corpo. Não duvidava mais da Maria Padilha.
“John, você não falou que me ama, mas para a Eva você disse. Não precisa falar. Sei que você me ama. Não é?”
Fixei meu olhar no de Maria. Agora era ela quem titubeava. Ficou vermelha de vergonha. Sorri. Ela retribuiu, ainda ruborizada, ao se ver flagrada com os seus mais legítimos sentimentos e emoções. “Na minha próxima visita você já estará recuperado. Aí você será meu. Você vai me possuir. E pode ficar tranquilo. Não tenho ciúmes da Eva e nem da sua ex. O amor jamais pode ser limitado. Se for verdadeiro, sagrado e acima de todos nós ele está e se perpetuará.”
Maria Padilha foi até a mesinha onde estavam as flores. Pegou-as e inalou o perfume. “John, você percebeu que as flores exalam o meu cheiro? Conta o teu segredo! Não precisa me contar hoje, mas quero saber. Você é um tremendo paradoxo. Porque uma alma tão elevada. Você reencarnou duzentas vezes, John. É a luz em pessoa. No entanto, ousou desafiar o lado sombrio da existência. Quer levar sua luz às almas perdidas?”
Ela devolveu as flores ao vaso e retornou para perto de mim, sentando– se na borda da cama. Parecia nutrir obsessão por mim. “Fala comigo, John. Por favor. Já, já irei-me. Os mistérios da noite me aguardam. Meus irmãos me esperam.”
Tomei coragem e falei:
“Você me chama de iluminado. Mente pra mim. Acabei com meu casamento, fracassei como pai. E agora, veja só. Aquela nossa brincadeira, no que deu? Destruí o casamento da Eva.”
Maria Padilha se levantou, furiosa. Apontou o dedo em riste para minha cara e esbravejou:
“Deixa de ser tolo, John! A Eva, essa menina bonita que você transou na rua… Você preencheu a vida dela! Sabe que casamento dela é uma merda. Você é tão insensível! Transou com ela várias vezes. Essa moça precisa de você! Nunca reparou nas cicatrizes nos pulsos da Eva? Estava muito ocupado olhando para seus seios fartos e lascivos dela?”, Maria Padilha me deu um tapa no rosto. “Perambulei pelas noites procurando uma alma que prestasse para salvar aquela jovem do suicídio. Até que te vi naquela sujeira de bar! Você deu sentido à vida daquela moça!”
Maria Padilha começou a chorar com uma angústia inaudita. Encostou seu rosto na cabeceira. Abracei-a com dificuldade, o medo me abateu. Meu rosto ardia; o tapa foi forte, por sorte não sangrou. Aos poucos ela foi arqueando o corpo, até ficarmos com os rostos frente a frente.
“John, conta para mim teu segredo?”
Não compreendia o jeito enigmático e sombrio com que ela me dirigia. Poderia ser como o Mito da Esfinge. Talvez eu não teria a mesma astúcia cognitiva de Édipo, por isso não ousei responder aquilo que fugia da minha vaga compreensão.
Maria se levantou e foi até a janela, com uma expressão dúbia, afoita. Enxugou as lágrimas com as mãos. Um vapor subia de seu corpo. “John, se há alguém que você ferrou de verdade, esse alguém sou eu! Você monopoliza meus pensamentos, desestabiliza minhas emoções. Isto é inexplicável. Mas vou descobrir o teu segredo. Feche os olhos. Em breve, voltarei a te ver. Serei tua.”
Fechei os olhos. Um ligeiro vento atingiu meu rosto. Quando os abri, ela já não se encontrava no quarto.
“Quem é você, Maria?”, adormeci, assombrado pelo mistério.
Recebi alta médica no dia seguinte. Eva me levou para uma casa que alugara. Contratou uma enfermeira para cuidar de mim por duas semanas, até que que eu me recuperasse completamente. Estava decidido. Eva pediu o divórcio e veio morar comigo. Maria não inventara; vi as cicatrizes em seus pulsos. Prometi para mim mesmo que cuidaria dela até o fim da vida. Eva conheceu minha filha. Ficaram amigas. Continuei tendo uma conversa sadia com a mãe da Lúcia. Maria Padilha ainda não me procurara, mas permanecia presente em meus pensamentos, em meus sonhos. Às vezes, tinha a impressão de que o rosto de Eva se transfigurava no de Maria. Provavelmente eu delirava. “Quem é você, Maria?”.
Quando o relógio marcava onze horas da noite, meu corpo se arrepiava. A hora da Maria. No banheiro, eu a homenageava como um adolescente. John, o amor não tem limites, ela me disse em nosso último encontro. Eu a esperava, a saudade me machucava. Amava Eva, amava Maria. Maria me deu Eva, Eva me deu Maria.
Tudo ia perfeitamente bem. Aos poucos, me transformei num homem que iluminava a vida das pessoas. Já não me sabotava mais e nem ferrava com a vida dos outros. Como me dissera Maria Padilha, eu era uma alma elevada. Sentia-me como um náufrago ao encontrar terra firme. No entanto, a vida nos prega muitas surpresas, no meu caso, quase sempre ferroadas das grandes. O absurdo da vida me envolveu novamente em episódios hostis. Era uma tarde de terça–feira, alguns meses depois da minha cirurgia. O celular tocou; era Daiana. Ligou para me dizer que nossa filha sofreu um acidente de carro. Estava hospitalizada, na UTI. Eu e Eva voamos para o hospital. Eva conheceu minha ex, o momento não era o mais agradável. A dor nos unia novamente. Minha filha se feriu seriamente. As ferragens do carro arrebentaram o seu rim. Sua vida corria perigo. Seria necessário um doador compatível. Era eu. Os procedimentos cirúrgicos deveriam ocorrer o mais tardar no outro dia.
Eva chorava. Daiana me abraçou.
“Eu te perdoo, John.”
Eva nos abraçou, e ficamos os três por um tempo consolando uns aos outros. O destino mais uma vez me exigia coragem. Faltava apenas a minha amada misteriosa. “Cadê você, meu amor?”, divagava em pensamentos. “Você prometeu me ver tão logo eu me recuperasse. Iria fazer amor comigo. Cadê você? Quem é você, Maria?”
Agora eu estava na mesa de cirurgia. Um dos meus rins seria extraído e transplantado em minha filha. Depois de quinze horas de cirurgia simultânea, já acordado, fui informado que Lúcia estava bem. O transplante fora um sucesso, e ela não corria riscos. Três dias após a cirurgia, ainda internado em recuperação, fui acometido por uma infecção. Meu corpo foi bombardeado de antibióticos, mas o ataque bacteriológico se agravou e o quadro evoluiu para infecção generalizada. Meus órgãos e tecidos passaram a ser fulminantemente danificados, o risco agora era a falência múltipla de órgãos vitais. Por um dia meu estado de saúde se estabilizou, o que ensejou tranquilidade do corpo médico e dos enfermeiros. Contudo, um dia após ao otimismo, houve uma correria ao constatarem que meu quadro clínico piorara, não só retrocedendo, mas se agravando ao clímax. Problemas cardiovasculares, uma parada cardíaca me atingiu em cheio. Os médicos tentavam me ressuscitar. Fiquei num aparente estado de inconsciência, letárgico. Talvez eles não soubessem, mas eu experienciei tudo. A sensação era como se meus sentidos não estivem na exata sincronia esperada, mas minha audição se mantinha ativa e ainda mais aguçada. As visões das coisas externas pareciam não corresponderem com a realidade, eram confusas.
Eu ouvia os médicos em desespero. Estava morrendo.
“Estamos perdendo ele!”, gritava um dos médicos. O oxigênio me faltava. Entrei naquele incrível estado de êxtase, relatado por aqueles que vivenciaram a quase-morte, tendo ultrapassado por alguns instantes o mundo fenomenológico. Foi quando comecei a ouvir a voz de Maria Padilha. Ela, de longe, falava comigo mentalmente. Ao seu lado caminhava a alma de minha mãe, fulgurante. Os médicos tentavam de tudo para me trazer de volta, para me reanimar. Agulhas penetravam minha pele. Eu estava a poucos passos da outra margem do rio da vida.
“John, seja corajoso. Não atravesse o rio. Me espere, Sua mãe me acompanha em estado de luz. Ela me falou de você, meu amor. Agora sei um pouco mais sobre o teu segredo.”
Ela caminhava de mãos dadas com a minha mãe, uma luz de tom esverdeado. Eu as via perfeitamente a alguns quarteirões do hospital. John, preciso te dizer algo muito sério. Você ia morrer hoje. Reuni-me com meus irmãos, pedi a ajuda deles para intercederem em teu favor. Eles aceitaram me ajudar, e você viverá o necessário para corrigir alguns erros dessa tua vida terrena. Mas foi imposta uma condição muito dolorida para mim”, Maria Padilha era só prantos, embora sorrisse para me acalmar e me dar forças. “Depois de hoje, quando eu soprar tua alma para o seu interior novamente, nunca mais poderei me manifestar fisicamente para você. Não poderei amalgamar meu corpo ao teu, como prometi”, ela agora sorria e repentinamente voltou a falar, com o tom emocionado. “Eu te amo tanto. Enquanto caminho até você, me conte teu segredo, John.”
Maria Padilha vinha me salvar, e eu desejava o seu amor, o calor do seu corpo. Sua beleza inigualável, seus mistérios. Quem é você, Maria?, eu era incapaz de decifrar o enigma de um ser tão inextrincável. E ela sorria diante da minha ingenuidade.
Os médicos entraram em desespero total. Na tela do monitor cardíaco, o sinal de frequência apontava o fim da travessia. Injeções e mais injeções. “Estamos perdendo ele!”. O jovem médico não desistia de mim. Uma força indescritível me arrastava para a outra margem. Adeus Eva, adeus filha, adeus Daiana. Parto com o seu perdão. Estou feliz.
Entregava-me para a correnteza me levar.
“John, me espere. Estou chegando.”
Uma luz invadiu a sala de cirurgia. Minha mãe estava ali. Portas batiam lá fora. A porta do centro cirúrgico foi violentamente arrebatada, ouvi o estrondo. Maria Padilha vinha atravessando o corredor, passou por Eva e por Daiana, e, incrivelmente, um dos meus irmãos estava lá também. Aguardavam apreensivos informações no corredor. Eu observava tudo mentalmente. Eva disse: “É ela!”. Daiana perguntou: “Ela quem?”.Eva respondeu sem pestanejar: “A amiga misteriosa do John. Maria Padilha.”
Os médicos se assustaram com aquela sedutora mulher dentro do centro cirúrgico. Chamaram os seguranças para contê-la. Maria Padilha retirou o punhal e se aproximou de mim. Os médicos tentaram segurá-la. Num estalar de dedos, todos dentro da sala de cirurgia ficaram estáticos, e ela, majestosa, em seu rompante cabalístico, furou o dedo indicador da sua mão esquerda. Uma gota de sangue brotou em forma de flor. Lambuzou seus lábios com o sangue.
“Eu te amo, John. Você é e será sempre o meu amor, em qualquer gênero, em qualquer situação. Isso é inexplicável. Em outra vida, você me contará o teu segredo, João Alfredo, o duzentas vezes reencarnado.”
Ela me beijou sensual e demoradamente. Um sopro fulminante avançou minha garganta adentro. A sensação foi o gozo multiplicado por trilhões de vezes. Meu corpo retornava para a margem do lado da vida. O monitor cardíaco ensaiou ruídos. Quando nossas bocas se desprenderam, seus lábios não estavam mais tomados por seu sangue. Já me percorria pelo meu corpo, absorvido.
“Até, John.”, foi o que ela disse antes de se virar e caminhar para fora da sala. Maria foi se retirando e, centímetros antes de sair pela porta, estalou os dedos, devolvendo a consciência aos médicos. O jovem médico, ouvindo o bip do monitor cardíaco, não titubeou. Enfiou em meu peito uma agulha gigante, injetando um líquido potente em alguma parte do coração. Meu corpo reagiu. Suspirei. Os médicos foram ao delírio.
“Deus é grande!”, o jovem médico chorava de emoção. O cirurgião-chefe o cumprimentou efusivamente. Aquele rapaz não desistira do paciente. Uma enfermeira correu atrás da Maria Padilha, que já sumira pelos corredores. Agora, depois do suspiro vital, eu já não a via mais mentalmente. Minha família foi informada do milagre. Não havia explicação plausível e científica do meu retorno para o mundo dos vivos, muito menos da rápida revitalização dos órgãos anteriormente constatados como falidos.
“Maria, quem é você?”
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