A Batalha dos Sete Valentes - Recicla Leitores
Na manhã do domingo em que se comemorou o quinquagésimo aniversário do fato épico conhecido como Batalha dos Sete Valentes, o velho Jorge Santos, trancado em seu quarto, segurava, tremendo as mãos, uma fotografia, observando-a incansavelmente. Algumas horas depois, no período da tarde, ele participaria de uma sessão solene na Câmara Municipal em sua homenagem. Esclareça-se que Jorge Santos foi o único sobrevivente daquele insólito confronto, na área rural, no Bosque dos Seringais.
Apesar de suas oitenta primaveras, Jorge exibia boa saúde, de modo que o comportamento psicossomático oscilante dele, mantendo o retrato nas mãos, era fruto de uma perturbação de ordem moral, que teimava lhe assombrar de tempo em tempo. Aquela história precisava ser restaurada, mesmo que custasse a destruição da sua reputação heroica, refletia o Jorge. O homem angustiado estava decidido: libertaria-se de uma vez por toda daquele fardo. Ia aproveitar da ocasião comemorativa da tarde para corrigir o seu embuste. Só assim deixaria de devorar o seu próprio coração.
Ao contrário do que ele relatou à época, e que constou nos arquivos oficiais, os Sete Valentes não lutaram contra dois monstros naquela tarde de domingo de décadas atrás; aquele estranho dia. Pouco se soube, comprovadamente, quem realmente eram aqueles dois estranhos, bem como o propósito deles, a eventual missão que executavam. Tudo o que se cogitou, a posteriori, não passava de versões estapafúrdias, algumas convenientes teorias conspiratórias, as quais sempre beneficiam os vilões do mundo.
Os militares brasileiros, com histórico pendor antidemocrático, manipularam como quiseram o episódio em questão, na medida em que o mistério envolvido foi solo fértil para as ações insidiosas dos generais. Quem sofreu o primeiro golpe covarde foi, mais uma vez, a frágil democracia brasileira, pois as Forças Armadas, uma mês depois da Batalha dos Sete Valentes, perpetrou o golpe: o então presidente João Goulart caiu; o jornalista Carlos Lacerda se arrependeu de ter apoiado os golpistas; muita gente se viu calada e outras centenas morreram, quando não eram obrigados a fugir para o exterior. Como o episódio que o Jorge Santos participou tem supostos vínculos com o golpe militar, brevemente será esclarecido ao atento leitor que, por ora, tomará conhecimento dos detalhes da Batalha dos Sete Valentes, no campo dos seringais.
Era um domingo de fevereiro, 1964, dez e meia da manhã, hora em que a missa na Praça Central terminava. Muitos fiéis ainda desciam a escada da Igreja quando ouviram o estrondo, um baque seguido de uma explosão. O ruído veio do sul e a fumaça escura que surgiu não deixava dúvidas quanto ao local. O assombro da comunidade não parou por aí, pois aquela gente reunida na praça observou dois artefatos planando, perdendo altitude no horizonte meridional, descendo em círculo igual aos astutos urubus. “Dois paraquedas”, sugeriu alguém. Um grupo de homens, capitaneado pelo padre Daniel, correu avisar o chefe de polícia do vilarejo, o designado Doutor Augusto Azevedo.
O padre chegou na frente da casa do delegado com a língua de fora, permaneceu parado, recuperando o fôlego, enquanto os outros homens chamavam pelo policial, batendo palmas e berrando. Azevedo, que preparava o almoço na cozinha, abandonou os afazeres do lar e saiu atender aos chamados. Ouviu o relato do padre e de sua trupe: dois paraquedas que pousaram “lá pelas bandas do Seringal”, após a explosão e a fumaça. Apontaram ao delegado o céu esfumaçado.
O delegado Azevedo se lembrou que quando se encontrava mexendo nas panelas, um tempinho antes, também ouvira um barulho, porém, acreditou ser o estouro de um transformador de energia. Sua conclusão se mostrou tão equivocada que não conseguiu esconder um leve traço de decepção no seu rosto. Recompôs-se e raciocinou sobre o relato. “Deve ser algum acidente aéreo. Aeronave caiu. Pilotos se ejetaram. Estranho…“, sugeriu o delegado ao grupo do padre. Todos lhe deram razão, afinal, a sua biografia ostentava ter sido soldado expedicionário na segunda Guerra Mundial. Conheceu de perto as coisas da guerra, a maldade humana no seu ápice. Ganhou medalhas de mérito.
O delegado Azevedo e o grupo se viram surpreendidos por um homem a cavalo, que vinha virando a esquina, galopante. Aproximou-se, e chegou berrando: “Dotô Zevedú! Dotô Zevedú!”. O cavaleiro apeou do animal em pleno movimento, e quase atropelou o padre. Era o roceiro Eusébio quem chegava, morador de uma chácara, próxima de onde subia a fumaceira. “Dotô, eu vi os home que caiu du céu. Tão armadu até os denti!” Contava atropelando as palavras, ignorando as letras, pouco se entendia o que o Eusébio tentava falar. Se via que ele mijara nas calças. Quem percebeu nada comentou, pois a situação se apresentava minimamente compreensível.
O delegado exigiu maiores detalhes do roceiro, que gaguejava muito, batendo o queixo. Azevedo via o tempo correr, e isso era taticamente péssimo, por isso se impacientou, repreendendo sem dó o assustado Eusébio; por pouco não abusou das prerrogativas do seu cargo. Em tempo, o roceiro acalmou os nervos, e desembuchou claramente o que ele presenciara na borda do seringal. Foi objetivo na sua elevada condição de única testemunha ocular, sendo que o delegado o instou a declarar sem tecer hipóteses, só fatos. Eusébio prestou os esclarecimentos devidos, nos termos seguintes:
Declarou que avistou dois homens forasteiros; que ambos vestiam roupas tipo farda militar; que falavam entre si em uma língua estrangeira; que, quanto a possível procedência deles, não soube identificar o idioma pelo qual conversavam; que, por fim, tinham armas e munição.
Azevedo, coçando o queixo, ouvia o roceiro e sua mente sofria uma chuva de pensamentos. Ocorrência enigmática, aquela. No puro raciocínio, investia na decifração da natureza incomum dos fatos. O impenetrável desconhecido o venceu, levando-o a explorar o campo seguro da precaução. Com a firmeza de um líder nato, o delegado Azevedo, lembrando a todos de sua autoridade legal, ordenou-lhes que guardassem segredo do dito pelo roceiro. Deu por encerrada a conversa e cada um seguiu o seu caminho. Faltava pouco para o almoço; as barrigas roncavam.
O delegado retornou para dentro de casa e se dirigiu direto ao telefone. O primeiro passo, logicamente, era informar a situação para os seus superiores. Discou o telefone e tentou contatar o Chefe da Regional, na sede da Comarca de Aradados. A telefonista local lhe disse que a comunicação se encontrava prejudicada, provavelmente rompimento de cabos. Não havia previsão de rápido restabelecimento dos serviços telefônicos. Azevedo bateu o telefone no gancho sem dizer tchau, preocupado ao saber que não poderia contar com o apoio dos colegas policiais. Pensou: deslocar-se até a sede exigia muito tempo; era arriscado demais deixar a comunidade desguarnecida da força pública, muito mais com aqueles dois forasteiros pela redondeza. Mandar algum civil ir até Aradados falar com os seus superiores poderia ser visto como uma conduta de insubordinação hierárquica. Bem num domingo? Melhor evitar, decidiu Azevedo.
A solução daquele ‘probleminha’ seria inteiramente caseira, sob a responsabilidade do designado, ele mesmo, o Azevedo. Calculava, intercalando entre acertos e erros; coçava o queixo, como sempre. A possível localização dos paraquedistas distava cerca de três quilômetros da vila, significando menos de meia hora de caminhada. Se aqueles homens armados fossem pessoas mal-intencionadas poderiam fazer grande desgraça. A melhor opção era estabelecer contato com os forasteiros ainda lá no campo do seringal, longe da comunidade.
Entretanto, supunha o delegado, ir sozinho até os desconhecidos visitantes era uma baita burrice, suicídio. Ele fez um esforço mental e veio a grande ideia: convocaria alguns homens da vila para acompanhá-lo na missão. Achou por bem que seis eram suficientes. E assim foi como se deu a entrada do Jorge Santos no episódio de cinquenta anos atrás, que tanto o atormentou até o dia de seu falecimento.
Azevedo escolheria os seis voluntários usando um critério inteligente, o qual, por consulta, foi referendado por alguns notórios cidadãos da localidade. O padre, o primeiro consultado, vislumbrou na ideia uma “dadivosa chance de redenção para os escolhidos.” Metafísica à parte, o critério, sem dúvidas, era sobremodo engenhoso: ter fama de valente, briguento ou esquisito assustador. A história narra grandes feitos realizados por pessoas com as citadas qualidades, assim afirmara o padre, um leitor voraz da rica obra do Antônio Vieira.
Em regra, toda a gente é pacífica nas pequenas cidades, característica social essa que quase impossibilitou o preenchimento das seis vagas do pelotão de infantaria do doutor Augusto Azevedo. Para orgulho geral, a dificuldade de se apontar seis desajustados cidadãos só provava a conduta majoritariamente virtuosa da comunidade. Fez-se necessário um breve e caloroso debate entre o delegado e os notáveis moradores, com a incontornável exposição de fatos vexatórios, então esquecidos, da vida de algumas pessoas, comparando a falha de um com a estupidez do outro, para tornar possível a escolha dos seis homens do delegado.
Azevedo ficou satisfeito com o resultado da seletiva, e a sua equipe teve a seguinte escalação: o Peixerinha, que não desgrudava de um punhal, sempre preso à cintura; o Marelo, bêbado de final de semana, espancador de esposa; o Loprado, que ostentava uma tatuagem no ombro direito, o sigma do integralismo, fanático velhaco; o Cruel, mestre em capoeira, ninguém nele entrava; o Jegue, homem destruidor de casamento, embora fosse feio de dar medo; e, finalmente, o Careta, o Jorge Santos, na época um jovem encanado, com mania de perseguição, esporádico encrenqueiro.
O relógio registrava meio dia e meia quando os seis escolhidos tomaram ciência dos fatos e dos motivos da convocação policial. Receberam as primeiras instruções do delegado, e, autorizados a se pronunciar, nenhum deles declinou do encargo. Antes de iniciar as ações, Azevedo lhes disponibilizou armas e munição, e todos afirmaram saber manejar arma de fogo. Após testarem os equipamentos, rezaram em roda, abraçados, e depois caminharam até a garagem para se acomodarem no jipe, o qual seguiu conduzido pelo delegado. Partiram às treze horas em ponto, sob os aplausos dos respectivos familiares, amigos e alguns curiosos que lotaram a calçada da Delegacia.
O campo do Seringal se localizava na margem esquerda do Rio Candoca. Em poucos minutos o jipe atravessou a ponte de ferro, percorreu mais três quilômetros pela estrada municipal, até que o Azevedo entrou à direita, no acesso da Fazenda Aroeiras, estacionando mais à frente, do lado da cerca de um vistoso cafezal, onde o grupo desceu do veículo. A fumaça do suposto acidente continuava ativa e sujava o céu. Auxiliado pela fumaça, Azevedo calculou que estavam bem próximos dos forasteiros. Prático em movimentações militares, expôs o plano passo a passo para os seus Valentes homens, designados soldados ad hoc. Dali continuariam o percurso andando, por entre os pés de café, evitando toda espécie de ruído. O intuito era empreender surpresa aos estranhos.
O território se apresentava variado no quesito vegetação. Topograficamente, predominava o relevo plano, mas havia alguns trechos em leve declive, como bem observado pelo Azevedo. Descrevia para o grupo a geografia do terreno, ponderando sobre a melhor trajetória, bem como o modo de proceder em cada etapa.
Primeiro o cafezal, seguido de um piquete nivelado de pastagem alta, alcançando a altura do joelho; a vegetação naquele ponto era favorável para a camuflagem deles, mas, por outro lado, exigia cuidado no movimento para não farfalhar o capim a ponto de gerar ruído perceptível à média distância. O pasto era sucedido por um curto asseiro de solo limpo. Por fim, atingia-se a orla do seringal, constituído de altas árvores agrupadas em forma de bosque.
Os sete Valentes percorreram o cafezal tranquilos, evitando pisar nas folhas secas barulhentas. Eles escolhiam onde pisar, imitando a técnica do ágil Azevedo, que trilhava solitário na dianteira, mantendo curta distância com seus homens. Diferentemente era o comportamento do Loprado, que avançava pelo território com descoordenada movimentação. Pareciam que seus pés pesavam uma tonelada tal o som desproporcional que suas pisadas geravam.
O delegado, insatisfeito com a performance do rapaz, gesticulava-lhe cautela, impunha senso de responsabilidade. Suspeitou até de uma eventual influência narcótica no Loprado, pois o olhos esbugalhados daquele jeito só se via nos usuários de opioides. Azevedo fez uso quando esteve na Itália, daí o seu profundo conhecimento dos efeitos dos entorpecentes. Prometeu a si mesmo, terminada aquela missão, prestar atenção diária naquele sujeito, para o bem de toda a comunidade.
O delegado aproveitou o momento em que repreendia o Loprado, e alertou o grupo de que embora aquilo não era uma guerra de verdade, a circunstância atual deles todos era muito semelhante ao exercício de tropa em movimentação, que busca ganhar território para ter uma boa posição no campo da batalha inafastável. Aconselhou os seus homens para não levarem ao pé da letra a comparação feita, queria apenas conscientizá-los sobre o perigo de subestimar o elemento imprevisível de semelhantes situações. Encerrou dizendo que tudo seria resolvido tranquilamente, sem violência. Nesse momento, os homens fizeram o costumeiro sinal da cruz.
Apesar do descuidado Loprado, o cafezal foi superado sem problemas, e o grupo avançou pelo pasto, trecho em que Azevedo determinou movimentação em rastejo. O objetivo do grupo na etapa da pastagem era alcançar um monte de terra perto de uns cupinzeiros arruinados, já bem próximo de onde a fumaça subia. O esforço foi terrível, os ferimentos na cara inevitáveis; o fino e áspero capim corta igual lâmina de barbeiro renomado. O rastejo seguiu lento, e os homens, enquanto se rastejavam amassando o capim, foram também muito fustigados pelas picadas doloridas dos insetos. O Jegue, coitado, arrastou o corpo sobre um formigueiro, sofrendo milhares de picadas, e sua barriga ficou parcialmente pipocada. Entretanto, para a segurança de todos, o homem brigava com as ferozes formigas engolindo o choro, o berro, mostrando o seu valor, pois picada de formiga do mato dói demais, imagina então receber no corpo centenas delas simultaneamente.
A despeito das dificuldades relatadas, chegaram nos cupinzeiros, no monte de terra, ocultando-se, com os seus rostos arranhados e o Jegue aindaespantando algumas formigas grudadas na sua pele. Por muito pouco o grupo não caiu na gargalhada, pois o Cruel parecia um porco-espinho de tanto carrapicho que se acumulou no seu cabelo crespo e entrançado. A ocasião não autorizava descontração, sussurrou-lhes o delegado, ajudando o capoeirista retirar os carrapichos do cabelo.
Dos cupinzeiros já se ouvia a voz dos forasteiros, logo à frente. O delegado Azevedo jogou o binóculo nos olhos e observou nitidamente os dois homens fardados manejando um rádio transmissor, parecido com aqueles utilizados na Itália, na grande guerra. Os estranhos se encontravam de costas para o grupo, coisa setenta metros de distância, conforme calculou o delegado. Aqueles dois homens se mantinham entretidos no aparelho de comunicação, não esboçando qualquer sinal de terem percebido a aproximação do grupo.
Chegou a hora de agir. Azevedo determinou que só atirassem com a sua expressa ordem. “Nada de atropelo”, sussurrou olhando para o Loprado. O delegado deu o sinal, no inevitável instante em que os sete homens abandonaram o esconderijo e avançaram ágeis sobre os forasteiros. O delegado previra maior dificuldade na investida, e ficou surpreso por seu desacerto. Tudo terminaria bem, esperava ele.
Os forasteiros foram surpreendidos desarmados, não houve contra-ataque, apenas levantaram as mãos para cima, vendo-se subjugados pelas armas apontadas, em distância de impossível erro no tiro. Naquelas circunstâncias, nem um cego total erraria o menor alvo. Tendo o controle absoluto da situação, Azevedo dirigiu a palavra aos homens capturados, e estes, igualmente, buscavam estabelecer uma conversa, muito embora falassem no idioma deles, ignorado pelos brasileiros. Diante da infrutífera troca de palavras, ambos os lados empreenderam comunicação gestual, demonstrando parcial êxito mútuo. Os estranhos apontavam as suas armas no chão, perto de suas mochilas.
O delegado entendeu a boa intenção dos forasteiros, e ao fazer a leitura zelosa do cenário e a posição de seus atores, descartou o perigo. Pedia calma aos seus homens, localizados atrás dele, com as armas apontadas e os dedos titubeando sobre a alça do gatilho. Voltou novamente a atenção para os forasteiros, sinalizando-lhes tranquilidade. Percebeu que os dois ainda se mostravam ressabiados, Azevedo decidiu ser o mais claro possível sobre suas pacíficas intenções: depositou a sua arma no chão. Os forasteiros, surpresos pela atitude, entreolharam-se, trocaram algumas palavras, e então um deles, o mais loiro, reiniciou o diálogo com o delegado. Cada qual decifrava o gesto e a mímica do outro.
Confiante, o delegado se aproximou calmamente dos forasteiros, ao tempo em que determinou aos seus homens que também repousassem as suas armas no chão. O estrangeiro loiro, o mais velho deles, tentava explicar por gestos e mímica como se deu o acidente aéreo. Contrariando a determinação do Azevedo, o Loprado se manteve com a arma apontada para os “invasores”. Com seus olhos arregalados, não titubeou em dirigir a palavra ao delegado: “Doutor, aconselho cuidado. Não sabemos de quem se trata e de onde vieram esses malditos!” O delegado não lhe deu ouvido, e continuou a sua aproximação com os forasteiros. Partiu para o cumprimento físico, conduta esperada na arte da diplomacia.
Azevedo aos poucos reconheceu aquele idioma estrangeiro. Em algum lugar já ouvira aquele sotaque. Sim, se lembrou completamente, ouvira o sotaque durante a segunda grande guerra, nos campos da Itália. Orgulhoso da sua honrosa lembrança, decidiu compartilhá-la com os seus homens. Afirmou igual a um professor ginasial tirando as dúvidas da classe: “Conheço a língua deles. São russos.” Foi quando o Loprado surtou, e deu início a uma inútil tragédia.
“Comunistas! Soldados do Kremilin! Demônios!”, berrou o fascista Loprado. O delegado até que tentou controlar a fúria do seu auxiliar, mas a desgraça veio a galope, pois o Loprado saudou o “Anauê” e puxou o gatilho sem pestanejar. O tiro de grosso calibre arrebentou a cabeça de um dos estrangeiros, o loiro, e matou também, por “tiro amigo”, o honrado delegado Augusto Azevedo. O forasteiro sobrevivente, um ágil combatente, de traços quirguizes, jogou-se no chão, agarrou a sua arma e virou o corpo atirando com destreza, matando o Loprado e o Peixerinha. O Jegue, imóvel no meio do campo de batalha, foi baleado abaixo da barriga, caindo inválido. O Marelo, tentou correr até os cupinzeiros, foi quando uma bala atravessou por trás da sua perna e lhe cuspiu a rótula do joelho para fora da carne. Careta, o Jorge, conseguiu dar fuga, afundando-se no interior do Seringal. No campo de batalha, ativos, restaram o russo, com a arma descarregada, e o Cruel, saltitante.
Cruel, mestre em capoeira, acertou uma voadora no russo, impedindo-o de recarregar a arma, que se soltou de sua mão e voou caindo longe dele, e assim se travou o fatal combate, homem a homem. Se fosse uma luta de doze assaltos, tranquilamente se afirmaria que o capoeirista venceu os cinco primeiros, e teria vencido a luta por nocaute se o seu adversário, o furioso russo, não tivesse apelado hediondamente. Registre-se, por justiça, que Cruel combateu o bom combate, e por muito pouco não saiu com vida daquela luta, pois quando teve chance de abater o inimigo, deu bobeira por excesso de confiança. Movido pelo desejo de vingar a morte dos amigos, quis prorrogar o sofrimento do inimigo; se esqueceu que seu oponente era soldado russo, filho de uma nação de gente simples e guerreira. E se esqueceu principalmente que disputavam a sobrevivência. Não haveria direito à revanche ao perdedor, que àquela altura tudo indicava que seria o forasteiro.
O combate se desenrolou aberto, os dois se atacando ferozmente. O estilo de luta do russo lembrava o boxe inglês e a luta livre, seus movimentos eram mais lentos que os do brasileiro. Este, mestre de capoeira, bailava gingando e saltando como uma onça na savana. O russo não conseguia acompanhar a destreza do Cruel, por isso o forasteiro vinha sofrendo uma sequência de golpes durante quase todo o combate. Foi atingido por chute explosivo na cabeça, e cambaleou igual bêbado antes de desabar de quatro na terra dura. O brasileiro, ingenuamente, deixou o oponente se recuperar do baque sofrido. A partir de então o Cruel começou a menosprezar o adversário, executando movimentos acrobáticos inúteis para o desfecho da luta. Num lance de bobeira do capoeirista, o russo conseguiu superar o gingado hipnótico dele, agarrou-o e bloqueou as suas pernas ágeis. Com Cruel imobilizado pelo peso do corpo do robusto oponente, este tirou uma faca da lateral da calça e golpeou por baixo da garganta. A fúria do russo foi tanta que a lâmina atravessou a papa e a língua do Cruel, e só estacou quando atingiu o céu da boca, fechando-a com a ponta da faca encravando na superfície do palato. Cruel gritou sufocado, antes de deixar o mundo.
Entrementes, Peixerinha e Marelo, feridos e agonizando com a perda de sangue, rastejavam-se na terra com a velocidade mórbida de um caramujo. Por desgraça grande, viram o combate travado entre o russo e o Cruel, torcerammuitopelobrasileiro, e o que viram foi o fim horrendo do capoeirista. O forasteiro caminhou até eles e agiu sem clemência: eliminou os dois com tiros na cabeça. Vivo, restou apenas o Careta, o Jorge, escondido no Seringal, e armado. Ele não chegou a ir longe, pois torceu o seu pé direito num declive de terra logo na entrada do bosque. O inchaço do pé evoluiu rápido e o Jorge teve que se desfazer da bota. Coxeava bastante, justo naquela hora terrível, quando a morte lhe dava boa tarde.
O estrangeiro saiu no encalço do Jorge, bosque adentro. Não demorou muito para se toparem e trocarem tiros. Jorge, inexperiente, atirava à esmo, e em pouco tempo ficou sem munição. Desesperado como bezerro em desmame, tentou correr, e isso lhe era impossível com o pé ferido. Resignou-se ao destino, entregando-se. O forasteiro, sem muita conversa, socou o rosto do Jorge até rasgar a bochecha e a testa dele. Com o Jorge vulnerável e sangrando pelas ventas e ferimentos, o russo pegou a faca para dar fim nele.
Jorge chorava, implorava, não queria morrer. O estrangeiro também falava muito com o brasileiro mantido imobilizado debaixo de suas pernas, enquanto segurava a assustadora faca. Puxou o cabelo do Jorge deixando a garganta dele totalmente exposta; naquela posição a lâmina deslizaria livremente na carne. O russo preparou o golpe, que seria desferido da direita para a esquerda, mas de repente desistiu no meio do caminho, abaixando o punhal. Avistara uma fotografia surgida parcialmente no bolso da frente da camisa do Jorge. Como entender o coração desses homens bravos? De inesperadas e costumeiras atitudes contraditórias? Que no instante de brutal violência vislumbra no inimigo a sua igual condição de imperfeito ser humano?
O estranho puxou a foto e se reteve olhando-a atentamente. O seu semblante passou a exprimir tranquilidade, comoveu-se observando o retrato do Jorge, o qual reconheceu na fotografia, ladeado por uma senhora com o filho caçula no colo. O russo se sentou ao lado do combalido adversário, não segurou o choro pungente. Falava com o brasileiro, sem se importar se era compreendido, com uma voz sofrida, carregada de uma tristeza contagiante. Pelos gestos que ele fazia, Jorge imaginou que o russo buscava alguma razão para aquela inútil tragédia. Jorge também chorou, e o russo lhe segurou a mão, protagonizando um gesto de grandioso significado. Jorge concluiu que a culpa era do Loprado, um doente fanático. Se não fosse a maldade do Loprado, seu ufanismo criminoso, as coisas teriam sido bem diferentes, dizia Jorge para si mesmo pensando no delegado e nos outros companheiros, mortos estupidamente.
O russo soltou a mão do brasileiro, levou-a ao bolso da jaqueta e retirou um retrato. Ficou o olhar na imagem por alguns segundos, e seus olhos brilharam como quem experimenta um instante de felicidade inefável. Cutucou o Jorge e lhe mostrou a foto, gesticulando que também tinha uma família. No retrato ele estava abraçado com a sua bela esposa grávida, tendo ao fundo uma moradia rústica de madeira, coberta de flocos de gelo. Os dois contendores, afinal das contas, eram, portanto, iguais, e o monstruoso destino, o absurdo da existência e, muito mais os governos, jogaram, de alguma forma ignorada por eles, um contra o outro; suas vidas eram irrelevantes para os poderosos.
O estrangeiro se levantou, guardou a faca na bainha e o seu retrato no bolso. Abaixou-se até o Jorge e devolveu a sua foto. Pegou Jorge pelo meio do corpo, levantou-o e o lançou sobre o ombro esquerdo. Como um estivador que carrega sacos de batata, levou o brasileiro até ao local do rádio comunicador, onde também estavam os corpos dos homens mortos, no solo colorido de manchas de sangue. O russo acomodou o brasileiro sobre um lençol estendido, prestando-lhe os primeiros socorros. Limpou os ferimentos e aplicou antissépticos, retirados de dentro de uma mochila. Jorge não entendia o que o forasteiro lhe dizia, apenas intuía se tratar de um “sinto muito”. Por várias vezes o forasteiro chutou o cadáver do Loprado, dirigindo-lhe xingamentos no seu idioma. Sim, Jorge também culpava o fascista pelo morticínio. Uma inútil guerra travada.
O russo terminou os curativos dos ferimentos do brasileiro e se dirigiu até ao rádio comunicador, passando a manejá-lo. Após algumas tentativas de comunicação, onde se ouvia vozes sufocadas pelo chiado, conseguiu estabilizar o contato, e iniciou um bate-papo com algum dos seus camaradas. Jorge, observando por um tempo os cadáveres espalhados pelo terreno, passou a temer pelo desfecho da sua vida, principalmente quando viu a situação do Cruel, com a garganta perfurada parecendo vomitar sangue mesmo estando morto. Jorge se apavorou, e movido pelo instinto de sobrevivência, esqueceu-se dos cuidados que o russo lhe fizera a pouco, decidindo agir se aproveitando da distração do forasteiro, concentrado no equipamento comunicador.
Jorge, de esguelha, avistou uma arma a cerca de um metro e meio dele. Convicto da sua decisão, executou o que pensava fazer. Rolou o corpo pelo solo, pegou a arma já engatilhada e rapidamente apontou para o russo. Este, completamente imerso na conversa pelo rádio, sequer ouviu os movimentos do brasileiro. Jorge o matou pelas costas, sem qualquer aviso, acertando o russo na altura da nuca. No canal do rádio alguém ficou falando sozinho por alguns minutos, até abandonar o contato. Jorge, sem motivo aparente, incendiou o aparelho, resumindo-o a cinzas.
Um tempo depois o reforço policial enfim apareceu, acompanhado do roceiro Eusébio, e Jorge foi levado às pressas ao Hospital da Comarca de Aradados. Convalescido, Jorge relatou tudo o que aconteceu às autoridades, entretanto, na parte de como matara o forasteiro, mentiu. Narrou a forjada versão de que deu fim no “siberiano” durante o confronto travado dentro do bosque, em emboscada, atocaiado, pegando o inimigo de surpresa. Teve com ele uma luta corporal, feroz, e já se dava por vencido quando caiu justamente perto de uma arma. O russo tentou fugir e o Jorge o acertou na nuca enquanto ele corria para o fundo do Bosque.
Os graves fatos tratavam de indivíduos estrangeiros armados em solo brasileiro, o que garantiu a jurisdição da investigação aos militares brasileiros, circunstância que lhes agradou convenientemente.
Dois meses depois do episódio da Batalha dos Sete Valentes, as forças armadas derrubaram o governo do Presidente João Goulart, em março de 1964, impondo uma longa ditadura no Brasil. Maliciosamente, os “milicas” engendraram a narrativa de que aqueles dois forasteiros eram espiões Sovietes trabalhando no planejamento de uma prevista invasão comunista no Brasil. O acontecido no Campo do Seringal era, segundo o Exército, uma das provas mais contundentes da real “ameaça comunista”, a engendrada justificativa para o golpe de 1964.
Dizem que o Jorge antes de depor oficialmente fora orientado pelos militares. Isso não procede, pois a mentira do Jorge caíra como luva para as intenções do Generais, e nem foi necessário forçar a barra com o valente sobrevivente. Como todo silêncio e toda omissão que beneficiam as autoridades tem um preço relevante, Jorge foi agraciado por um soldo mensal que recebeu por toda a vida. O valor não era alto, mas proporcionou ao Jorge uma tranquila situação econômica.
Depois de cinquenta anos, Jorge Santos, o Careta dos Sete Valentes, decidiu revelar a verdade dos fatos. A fotografia que ele não largou das mãos durante toda a manhã, cujas horas antecederam o início da Sessão Solene em sua homenagem, era o retrato do russo. A imagem registrava um momento familiar do forasteiro com a sua esposa grávida. Jorge pegou para si aquela foto e nunca a divulgou para ninguém, muito menos comentou sobre a sua existência, salvo para um sobrinho que ele estimava como o filho que não teve. Guardava o retrato do russo com o mesmo zelo com que uma beata trata o seu terço. Aquele retrato e o dele foram a causa de sua sobrevivência, assim acreditava Jorge. Não se cansava de ler e refletir sobre uma frase escrita em russo no verso da fotografia. Só depois de muito tempo, tendo se dedicado ao estudo elementar da língua Russa, que enfim conseguiu traduzi-la. Era um texto instigante do escritor eslavo Dostoiévski: “Quanto Mais se Ama a Humanidade, Menos se Ama o Indivíduo em Particular”.
Na cerimônia solene da Câmara Municipal, casa lotada, o herói Jorge fez a sua sofrida revelação, não deixando nada de fora. O público e as autoridades presentes o ouviram respeitosamente, silenciosos. Jorge esperava uma estrondosa reprovação por parte do público presente e da cidade em geral. Nada do que o Jorge previra se confirmou.
De repente, uma a uma daquelas pessoas, começou a entoar “Jorge, caçador de Comunista! Jorge, caçador de Comunista! Jorge, caçador de Comunista!” O povo comemorava a sua torpeza, aquela sua confessada covardia. Jorge não aceitava os aplausos efusivos da plateia. Assombrado pela insensatez coletiva, vislumbrou em cada uma daquelas lunáticas pessoas o rosto do Loprado. Inconformado, o velho Jorge tomou o microfone das mãos do sorridente mestre de cerimônia e chamou a atenção da turba sem caráter, voltando a relatar os fatos como verdadeiramente se deram, fortalecendo os argumentos para deixar bem clara a natureza covarde daqueles seus atos. Demonstrou a desonra que é assassinar um homem pelas costas, indefeso e que se mostrara ser um homem honrado e bom. Clamava pelo bom senso, pela sensatez das pessoas. Pugnava pela honra, que elas todas caíssem em si do vil espetáculo. Suas vigorosas palavras só aumentaram a macabra euforia geral. Em coro, o público entoou o Hino Nacional, e algum patriota agitava no ar a bandeira do Brasil, imponente.
Jorge começou a sentir fortes ferroadas no lado direito do peito, não entendia como aquela verdade até então falsificada, que tanto açoitou a sua consciência por décadas, nada significou para aquelas pessoas. Muito pelo contrário, eles vislumbraram naquele seu embuste a virtude e o heroísmo. Sua vileza foi que, afinal de contas, garantiu à nação derrotar a pretendida ditadura comunista, como sugeriu um vereador da cidade, que se identificava como conservador, a despeito de ser proprietário do bordel da cidade. Jorge não aguentou um minuto a mais, e foi a óbito ainda quando estava sobre o palco, infartando diante dos olhares esquisitos da turba, indiferentes e distantes dos valores basilares que sustentam a grandeza de um povo.
Jorge teve um funeral pomposo, com cerimonial militar, em que se executou a tradicional saraivada de tiros, seguida de uma triste trombeta fúnebre executando a lúgubre música Il Silenzio. E vieram as homenagens póstumas. Na praça da cidade levantaram monumento ao valente Jorge, um busto confeccionado por renomado artista plástico da capital.
Na placa de identificação da estátua do Jorge constava a mentirosa informação: “Sem ele o povo brasileiro não seria livre”. Ora, o atento leitor não se esqueceu de que logo após a Batalha dos Sete Valentes a democracia brasileira foi aniquilada pelos militares, dando início a uma violenta e corrupta ditadura militar. A memória do saudoso Jorge não merecia tamanha injustiça, e muito menos deveriam ter usado a sua vida e a sua mentira como falsa prova de “efetiva ameaça comunista”.
Um sobrinho do Jorge investigou a fundo a verdadeira identidade daqueles dois forasteiros. O que o sobrinho afirma ter descoberto, caso seja verídico, dá uma reviravolta absurda nos fatos. Por conta de suas suposições, o jovem sofreu um atentado, mas sobreviveu. Vivendo atualmente em paradeiro ignorado, deixou-se entender que continuava investigando aqueles fatos de fevereiro de 1964 e que num futuro próximo revelará o que nem o seu falecido tio Jorge sabia. Aguardemos, portanto, o que nos tem a dizer o corajoso sobrinho.
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